por Contardo Calligaris
O coletivo só consegue ser ruim devido à economia neurótica dos indivíduos
É um bom momento para se perguntar se é pior a solidão ou a companhia dos outros.
Claro, depende de quais outros. E, no caso da solidão, depende do tipo de companhia que somos para nós mesmos —alguns diriam que depende de nossa “interioridade”. É uma expressão da qual não gosto muito. Prefiro imaginar meus pensamentos, sonhos, desejos, conflitos etc. não como se
estivessem todos em algum divertículo intestinal escondido, mas fora, ao ar livre, numa nuvem que me acompanha, flutuando ao redor de mim.
Quando eu era criança, seguia meus pais em intermináveis visitas a monumentos e museus. Nos longos períodos de espera, eu escutava “minha orquestra”, um grupo de cinco pequenos músicos imaginários (elfos) que sempre puxava atrás de mim com uma corda (também imaginária).
Como me encaminhei mais para as letras do que para a música, hoje talvez preferisse um coro de podcasts, TEDs, audiolivros, debates e conversas.
Voltando, talvez a pergunta “melhor sozinho ou com outros?” não seja a pergunta certa.
Tentemos uma nova pergunta, então. Para que serve a companhia? Escolher estar com outros para quê?
Se você gosta do mundo como deveria ser, pode ir em frente. “Procuramos os outros para passear num jardim debatendo sobre a primazia da essência ou da existência” ou, melhor ainda, sobre as fantasias e os desejos que mais nos envergonham, mas que, no diálogo, conseguimos reconhecer como nossos.
Essa seria, aliás, uma boa definição da amizade, do amor e do casamento. Ser amigo, amante ou cônjuge não significa compartilhar crenças ou opiniões, mas descobrir coisas de nós mesmos que, sozinhos, nem sequer reconheceríamos como nossas.
Amizade, amor ou casamento de acordo com essa definição são excessivamente raros, mas não porque seria difícil encontrar os outros certos. Eles são raros porque só se tornam possíveis para quem tem a paciência, a liberdade e a coragem de explorar o estranho conjunto de pensamentos, desejos e conflitos que estão naquela nuvem da qual falei antes e que, no fundo, define quem somos, bem além do que imaginamos ser.
E os que estão dispostos a “examinar sua própria vida” (como dizia Platão) são poucos.
Em geral, procuramos os outros não para descobrir ou examinar quem somos com eles e graças a eles, mas para melhor nos esconder de nós mesmos. Ou seja, em regra, procuramos os outros para fugir de nós.
Com raríssimas exceções, o coletivo existe para isto: para nos permitir desconhecer a complexidade e os conflitos da nuvem de nossa “interioridade”.
Você, homem, não quer nem sequer ouvir falar de suas fantasias (reprimidas) de ser possuído como uma mulher? Sem problema: saia com uma turma de pares e bata num travesti junto com seus amigos.
Você, mulher casada, freme de vontade de transar com um colega, mas não quer nem sequer saber disso? Vá logo para o templo no domingo, celebrar com uma assembleia de outros fiéis o suposto “valor” da família cristã.
Você, homem ou mulher, se preocupa com as dificuldades de seu negócio na quarentena, mas se envergonha de pedir ajuda por isso? Junte-se a outros em situações parecidas para gritar que não tem vírus nem quarentena e vamos “reabrir” o país logo.
Na mesma linha, quando você for incomodado pelo judeu (ou boliviano ou venezuelano) que abriu uma lojinha concorrente pertinho da sua, não revele nem admita seu racismo. Basta se unir a outros e gritar que seu protesto não é por você mesmo, mas pelas “nobres” ideias da “raça” brasileira e da pátria homônima.
Você, que sonega impostos há anos (porque “nada voltaria para a gente de qualquer forma”), não se envergonhe, mas se vista de verde amarelo, se junte a uma carreata e peça auxílios, dinheiro e assistência.
Estenda os exemplos, descobrindo a função (principal?) de qualquer coletividade —igreja, partido político ou turma do boteco que seja.
Enfim, você, homem ou mulher, quando sentir as mordidas de mil desejos que lhe foram proibidos, se reúna com os que sentem igual, santifique a mortificação e, sobretudo, persiga incansavelmente os que não cedem às mesmas proibições. Ou seja, junte-se para proibir nos outros o que você não tem a ousadia de viver.
O coletivo é a raiz do mal. Mas o coletivo só consegue ser a raiz do mal por causa da economia neurótica dos indivíduos que precisam do coletivo para se esquecer de seus desejos e de seus conflitos, ou seja, para se esquecer de si.
*Publicado na Folha de S.Paulo