por Fernando Muniz
“Filhinha, não fique assim. Logo isso vai passar e aí vamos à sorveteria. Que tal”? A menina não presta atenção no que o pai fala e começa a montar um quebra-cabeças. Ele percebe o mal-estar, mas não sabe o que fazer. Procura a esposa, que está no quintal, estendendo roupas.
Resolve passar o tempo. Levanta-se da poltrona e para ao lado da filha. “Por que você acha que nós estamos fechados em casa”? A menina olha para a parede, o rosto cheio de tédio. “Para não espalhar a gripe, papai. Você não escutou na televisão”?
Ele não sossega. “Mas por que você acha que a gripe pegou a gente”? Ela para o que está fazendo. “Porque a Natureza está com raiva de nós”. E volta a procurar as peças das bordas, em especial os cantos.
O pai olha para a cozinha, em busca da esposa, que continua a lidar com as roupas. Na verdade, deveria ajudá-la, mas resolve continuar com a filha.
“Raiva? Mas o que você fez para ela”?
“Nada”.
“Você não protege a Natureza”?
“Protejo”.
“Então por que ela está braba com você”?
“Ela não está braba comigo. Ela nem me conhece. Ela está braba com todo o mundo”.
O pai coça a cabeça, sem saber que rumo dar à conversa. Pensa na grandeza do Universo e o seu peso, que o esmaga. Lembra-se da força destruidora do vírus, que impôs uma quarentena no país e faz os humanos lembrarem da sua precariedade e insignificância.
Sente inveja da filha, em paz com as suas certezas, concentrada em juntar peças coloridas. Tenta soar adulto. “Mas gripe tem pego mais os velhinhos. O que eles fizeram para a Natureza”?
“Nada”.
“E por que ela tem pego eles primeiro”?
“Porque eles são mais fraquinhos, papai. É por isso que, lá na escola, a professora disse para ficarmos em casa até a gripe passar”. Ela consegue formar as bordas. Joga a cabeça para trás, feliz.
Agora é a vez do pai se irritar; orgulho ferido. “E o que você acha que a gente pode fazer para salvar a Natureza”?
A menina solta um suspiro. “Parar de fazer fumaça, parar de matar os peixes e um monte de outras coisas, que eu não quero falar agora”. Volta ao quebra-cabeças, que começa a ficar bem difícil.
O pai busca a poltrona. Folheia o jornal, liga a televisão, ignora o chamado da esposa para ajudá-la com o almoço.
Sem rumo.