20:04Autoengano

por Fernando Muniz 

        Há dias a cidade está às escuras. Numa tarde qualquer de outono, sem nuvens, de repente uma fumaça negra surgiu do Oeste e cobriu tudo, casas, igrejas e fábricas, em questão de minutos.

Desde então as autoridades não sabem o que fazer. Até cientistas do estrangeiro foram chamados, mas ninguém consegue explicar o que aconteceu. Sair de casa com esse clima é, ao mesmo tempo, absurdo e perigoso. Nem com lanterna é possível enxergar mais que um ou dois metros à frente.

O telefone da casa chama pela terceira vez, em um espaço de quinze minutos. Deve ser algo importante. O homem levanta do sofá, aborrecido com a insistência. “Alô”.

“Boa tarde. Aqui é do Hospital de Clínicas”.

Ele sente um frio na barriga. A enfermeira poupa amenidades e sequer pede desculpas pelos termos médicos, cortantes.

Seu filho! Como pôde fazer uma coisa dessas? Se aventurar pelas ruas em um clima como esse… E o tipo sanguíneo deles, raríssimo, torna tudo mais difícil. O homem precisa chegar lá, o quanto antes.

Nas ruas, nem cachorros. E o hospital, a pé, fica longe; em um dia de sol daria quase uma hora até lá. Com esse nevoeiro, então, como fazer? Perderia o rumo em instantes e não saberia como voltar. Mas é o seu filho, lá, sozinho, prestes a ser operado de emergência. Ele respira fundo, apanha a lanterna, um capote e sai enfrentar o nevoeiro. Na pressa esquece o revólver sobre a mesa da sala.

Mas sua coragem dura não mais que dez minutos. “Ajudem-me, pelo amor de deus! Preciso ir ao Hospital de Clínicas, urgente. Meu filho está em perigo de morte! Ele só pode receber sangue de mim”… Grita de fazer eco. Uma luz ou outra acende nos prédios e logo se apaga. Silêncio. Começa a dobrar as esquinas a esmo, sem esperança, entregue ao destino.

Alguém o toma pelo braço. “Quê”!?

“Siga-me”.

O homem não consegue identificar o estranho, tão denso o nevoeiro. Mas ouve com clareza suas coordenadas. “Vamos dobrar aqui, à direita. Pare. Agora, dois passos à esquerda. Acabamos de desviar de uma árvore, por sinal”.

Ganham ritmo, como se o céu estivesse claro. O homem não faz ideia onde estão, o que o apavora. Se o estranho o largar aqui? E se, ao invés de irem ao hospital, estejam próximos ao precipício, do outro lado da cidade? Afinal de contas não faz sentido algum ajudar o próximo em um tempo desses sem que se queira algo em troca. Mas é claro! O estranho deve ter escutado seus lamentos e sabe da sorte do filho. Será que está sozinho ou ele tem comparsas? Teria caído em uma armadilha? Uma emboscada? Remexe os bolsos do capote, atrás do revólver e solta um suspiro.

O estranho pede para diminuírem o passo. “Cuidado, bem aqui tem uma escadaria que leva ao metrô. Mas nem adianta descermos, porque o transporte público parou de funcionar faz quase um mês. Você já deve saber disso, com certeza. As rádios e tevês tem dado essa notícia o tempo todo”.

E continuam a se esquivar de buracos, muros e bancos de praça, ao mesmo tempo em que as dúvidas não param de surgir. Por que seguir esse estranho? Por que não tenta chegar por si mesmo ao hospital? Por que não assume o controle da própria vida, pelo menos uma vez? Que mania essa, de seguir os outros! O homem não se aguenta. “Desculpe-me, mas você sabe mesmo para onde estamos indo”?

O estranho tenta ser gentil. “Não seria para o Hospital de Clínicas”?

“Sim…”

“Vou lá todo o dia”. E solta um pigarro; sua voz, grave, não inspira confiança. O homem sente um cheiro peculiar, trazido pela brisa. Teria vindo do estranho? Seria enxofre?

Trata de espantar essa ideia de imediato; onde já se viu, logo ele, que sequer acredita em Deus. Mas aquela escuridão toda, o filho em perigo e o revólver sobre a mesa de casa o deixam sem segurança de mais nada. Um arrepio corre pelas suas costas e braços, ao imaginar o estranho com um contrato nas mãos…

“Bom, aqui nos separamos”. O homem se agita. “Onde você está”? Sente as pernas faltarem.

O estranho encosta em seu ombro. “Chegamos ao hospital. A porta da frente deve estar por aqui”. De fato, uma luz fraca, à direita deles, desenha o nome do hospital. Sem pensar o homem dá um abraço forte no estranho, que não esperava demonstrações de afeto como essa.

“Me responda uma última pergunta, por favor. Como é que você faz para chegar até aqui, tão longe de onde estávamos, no meio dessa escuridão toda? Qual é o segredo”?

O estranho dá uma pequena risada, amarga. “Sou especialista em escuridão”.

“Desculpe-me, mas não entendi”.

O estranho se põe na frente do homem e procura o seu rosto com as mãos, como quisesse falar olho no olho.

“Tenho cegueira”.

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