por Fernando Muniz
“Elas já foram”?
“Já”.
“As duas? As crianças também”?
“Todo mundo. Foram na tua Aero-Willis, inclusive. Malka dirigindo, minha Mirna do lado, as crianças no banco de trás, as cadeiras de praia amarradas no bagageiro”.
“Mas você tem certeza, Itzik, que elas já foram mesmo? Será que elas não pararam em algum lugar”?
“Tenho, Shully. A Malka não te explicou o roteiro? Você não conversa com a tua mulher? Mas você não precisa ir, se não quiser”.
“Eu não disse isso”.
“Mas parece”.
Shully coça a cabeça, preocupado. Itzik coça a cabeça, por ter uma coceira. E por não gostar de conversas compridas ao telefone.
“Ah, Shully, chame o Mendy também”.
“O Mendy”!?
“Sim, por que não? Ou você vai deixar ele trancado no sótão da tua loja? Numa segunda-feira de carnaval”!?
“O Mendy… ele é esquisito”.
“Mas o que que ele fez a deus para merecer um parente feito você”?
“Ele… ele nem fala português direito”.
“Puta merda Shully, não basta o que aconteceu com ele na guerra? Chame o homem. Todo mundo tem o direito de se divertir um pouco nessa vida. O baile começa às dez”.
Shully vai atrás do primo, com medo. E se alguém os encontrar lá? Vai ser um desastre total. Logo agora que as coisas começaram a melhorar; até deu para comprar um carro. Mas por outro lado esse alguém vai se enrolar também, exatamente por estar lá. Mas e se o pegarem vestido de fantasia de carnaval, no caminho? Aí vai ficar complicado. Como explicar a situação? Melhor ir de táxi. Muito caro, mas fazer o quê.
Itzik fecha a loja mais cedo; quem vai querer tecido no meio do feriado? E vai atrás de uma dose do que tiver em casa.
Na hora combinada se encontram perto do salão de baile. Poucos carros na rua; uns foliões passam perto, sem nota-los. Shully começa a suar frio. Escutam a banda tocar marchinhas. E gritos agudos, o que atiça quem está na rua. Itzik, vestido de romano, solta o grito de guerra: “Vamos pra farra”! E toma um gole de vodka.
Shully está de camisa social, bermudas e mocassim – o máximo de descontração que consegue se permitir. Mendy não para de colocar e tirar as mãos dos bolsos, do mesmo paletó que usa desde que desembarcou no Brasil. Itzik nota o cacoete, mas fica quieto; para não dar razão a Shully.
A voz grossa do locutor, de tabagista, dá boas-vindas aos foliões e saúda as candidatas a rainha do baile, em seus biquínis mínimos, todos da mesma cor. Delírio geral. Desfilam felizes, para jurados mais felizes ainda, seus clientes especiais.
Mendy parece ter uma revelação; nunca vira uma coisa daquelas. Mesmo Shully deixa as preocupações de lado e admira as candidatas, especialmente as mulatas.
Itzik encontra um patrício, calção de futebol, barriga de fora e sandálias, bêbado, pendurado em uma índia; beijam-se na face, comparsas no crime. Shully se esconde atrás de um negro de quase dois metros de altura, com uma tanga de miçangas, enquanto Mendy continua tonto com as luzes, sons, peitos e bundas de fora roçando nele, disponíveis, intensas, ao alcance das mãos.
Os jurados não chegam a um consenso sobre quem será a rainha – por eles, elegeriam todas – e a música recomeça. Mendy encontra um canto e vai se sentar. Muita informação para uma cabeça que não consegue mais ver as cores do mundo. Itzik, borrado de batom, enganchado em uma baiana de minissaia e chapéu de Carmen Miranda, não consegue articular palavras. E dá-lhe vodka. Encontra mais um patrício, que não lembra o nome. O outro não lembra o dele também.
Shully, suado de encharcar a camisa, prega os olhos em duas mulatas, vestidas com salto plataforma, plumas de pavão nos cabelos e quase nada mais. Elas rebolam e riem; ele sente um volume crescer entre as pernas e coloca as mãos nos bolsos. Elas percebem e continuam a rir. E rebolam com mais graça ainda.
Uma princesa das mil e uma noites tira Mendy do torpor ao se sentar em seu colo. Sem reação, ele leva um beijo da negra, de desentupir pia.
“Olá querido, que surpresa você aqui no baile”!
“Como”!? Mendy leva um susto. E um beijo na testa.
Ela se aproxima do seu ouvido e sussurra: “Seu Mendel, danadinho, não está me reconhecendo”? A princesa tira o turbante e uma careca lustrosa aparece.
“Sou o Claudionor, entregador de jornal na sua rua”!
Mendy, ainda com o batom vermelho na boca, sente o ar ir embora. Desabotoa a camisa, sem sucesso. Arregala os olhos, a ponto de assustar a princesa. Faz que vai colocar as mãos no bolso, mas não consegue terminar o gesto. Infarto fulminante.
“Ai jesus maria josé, o homem morreu”! Claudionor sai correndo pelo salão, tropeçando nos saltos, aos berros. Mendy fica ali, imóvel, olhos e boca abertos, pálido.
Nesse meio tempo Shully vai ao banheiro se aliviar. Uma, duas, três vezes. Sente que pode ficar ali para sempre, ele e suas mulatas; mas batem na porta, pedindo a vez.
Volta ao salão, com uma coragem que não sabe de onde veio; só que as mulatas não se lembram mais dele, emboladas com três foliões. Mais abusados.
Itzik não se aguenta nas pernas, larga da baiana e cai no meio do salão, de bruços, dentes à mostra. “É o Brasil da puta que o pariu o caralho”! E cai num sono que só teve quando era criança. O mundo poderia acabar agora e ele não acharia ruim.
Claudionor, na porta do salão, tenta explicar o acontecido. “Tem um morto! Um morto, mortinho da silva”! Solta um grito e desmaia. Comoção geral, correria e a baderna toma conta do baile.
A música para assim que a PM chega. Irritados, os policiais não querem saber de conversa. Sobem com o camburão no meio-fio, o que atravanca a saída.
“Todo mundo calado”!
Shully sai do banheiro, enxerga a cena e se esgueira pela cozinha, com um pessoal que também prefere não ter encontros com a lei. Pula o muro dos fundos, rasga o fundilho da bermuda e perde um pé do mocassim, mas, a essa altura, não se importa com mais nada. Nem com a chuva, que começa a cair grossa.
O sargento vai direto ao ponto. “Cadê o cadáver”?
“Ali”! Uma das candidatas a rainha, inconformada com o fim da festa porque ninguém ganhou o título, aponta para algum lugar do salão, que nem ela sabe qual seria.
O sargento entende tudo, mexe no bigode e procura o soldado mais próximo. “Cata ele. Que maca o quê, porra! O cara tá morto! E joga ele na gaiola, senão vai sujar os bancos”. Vira-se para o outro soldado: “E essa odalisca aí, que deu o alarme. Vem junto. Testemunha”. Claudionor dá um grito e desmaia de novo.
Sobem no camburão e arrancam cantando os pneus, dispostos a encerrar o assunto na delegacia mais próxima. Claudionor se sente importante; vai prestar depoimento. Espera que a confusão não tenha arruinado a sua maquiagem. Começa a observar o soldado que o carregou; é o mais forte deles, por sinal.
Mas antes, passam pelo necrotério.
E deixam Itzik por lá.