por Thea Tavares
Já contei do receio que fiquei de que o menino, inundado de espontaneidade, levasse para dentro da sala de aula do seu jardim de infância o Papai Noel, velho batuta, e que isso motivasse a redução da maioridade penal no país em regime de urgência. Guardo trauma. Não foi essa a primeira vez que, sem querer, aprontei das minhas nesse período de abstrações festivas. Preciso me redimir socialmente, abandonando de vez qualquer resquício de adolescência tardia e mal resolvida da minha eterna juventude transviada.
Mas antes de voltar a abordar o tema dos presentes de Natal sob uma pegada mais condizente com as convenções e apelos da época, é preciso justificar a primeira bomba que detonei em um jardim de infância por conta da minha soberba, não quero esperar até o Juízo Final para essa confissão arrependida. Já se vão quase três décadas desde o episódio. Foi num tempo em que a gente ainda conta com a juventude e a gravidade a favor e detém aquela arrogância de que o pouco que sabe é suficiente para ditames sobre o comportamento dos outros. Claro que é sob essa base que edificamos todo o percurso dali para a frente e isso por si só tem seus méritos. Mas lembrar da arrogância e do orgulho de sabichona me enche de coceiras por todo o corpo.
Não recordo porque chegamos no assunto, mas acho que foi a minha filha quem me pediu que explicasse para a amiguinha dela a história do São Nicolau, que presenteava as crianças, e falasse também da roupa vermelha do Papai Noel, inspirada na propaganda de uma marca de refrigerantes. Pra quê, criatura!? Naquele ano, a Dandara era a única criança da sua turma de pré-escola a não acreditar mais no Papai Noel. As luzes da cidade inteira se apagaram para a menina. Enquanto os olhos das outras crianças brilhavam mais que o dente de ouro na boca da minha avó, imaginando como o velho batuta entraria na casa delas que nem chaminé tinha, a Danda se perguntava se a sua “Mama África” conseguiria comprar o presente que ela tanto desejava ganhar naquele Natal. Até hoje a Ivone credita na minha conta a fatura dessa desilusão precoce da menina.
Por isso que, quando o Lenon, de cinco para seis anos, riu gostoso da minha menção à versão natalina do Garotos Podres, eu me borrei de medo. De novo, nãoooo. Toma jeito, mulher, e aprende de uma vez com a vida! Mas ele já deve ter esquecido… ufa e para felicidade geral da Nação abduzida em que nos encontramos. Coincidentemente, o Lenon e a Dandara, com a diferença de pouco mais de 20 anos que os separa, me lembram de momentos parecidos que os dois viveram quando receberam de presente um livro infantil. Vou contar como guardo na memória, o que não quer dizer que seja tudo, tudo conforme aconteceu na real. Como diria o Chicó do Ariano Suassuna, “só sei que foi assim”…
O presente dela veio de uma feira literária promovida pela escola. A menina percorreu todos os estandes e sentenciou para a mãe, logo que botou os olhos no que para ela seria a oitava maravilha da humanidade: – Eu quero aquele, apontou. “Aquele” era nada menos que uma publicação sobre geologia com capa colorida, alta qualidade de impressão, cheia de pop-ups e com pedras vulcânicas, areia, massa, truques e experiências diversas para aprofundar o encantamento da criança. Na época, custava mais de 90 reais, equivalente hoje, talvez, a alguma quantia entre 200 e 300 reais, o que arrancou lágrimas de desespero daquela mãe proletária, pois sabia em detalhes cada estresse e cada preocupação passados no trabalho, que resultaram no seu soldo mensal para arcar com o presente da Danda.
Era o desejo (premonitório) da menina. O jeito foi se agarrar na missão de padecer no paraíso, fechar os olhos e mandar embrulhar com o melhor papel de presente da loja aquela oitava maravilha. Eu lembrei às lágrimas dessa história e procurei a mãe com os olhos quando, na plateia da formatura da Dandara em Geologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), ouvi chamarem a menina, para a qual eu havia matado o Papai Noel já na pré-escola, como merecedora da láurea acadêmica daquele ano. Bendito livro de pedrinhas vulcânicas e bendito autoconhecimento da criança, hoje uma adulta realizada e que tem o mundo aos seus pés para transformar.
É aí que entra o Lenon. Não sei o que fará de sua vida, mas só tenho a certeza de que será algo grandioso, proporcional também ao gigantesco espírito, coração, inteligência, curiosidade, alma, luz e humanidade que transbordam e explodem daquele menino ao encontro das pessoas que orbitam em torno dele. Recentemente, foi orador da turminha na formatura do jardim de infância e uma noite dessas ficou extasiado quando ganhou um livro sobre planetas, a Terra e a natureza de presente. Não queria dormir nem deixar ninguém mais em casa dormir sem devorar os conhecimentos da publicação. Muitas informações ali ainda estão aquém do seu alcance por completo, mas tenho certeza de que ele irá se apropriar de cada palavra e de cada imagem porque é assim que ele funciona, intensamente!
A satisfação do pequeno sábio fez eu voltar também a quando ganhei uma boneca na minha infância, lá no milênio passado, com a qual brinquei tanto que antes de adormecer de cansaço e com as baterias emocionais descarregadas, o alvo do meu desejo de criança já estava despenteado, sujo e eu já sabia como arrancar a cabeça dela e colocar de volta, testar os limites de torção dos seus braços e pernas para posicionar a boneca em várias situações fantasiadas e já tinha levado umas boas palmadas da senhora minha mãe, me chamando pelo nome inteiro (- Ai, Jesus!), que não enxergava naquilo tudo a demonstração da minha curiosidade nata e de uma admirável imaginação fértil. Qual era o problema dos adultos naquela época?
Só sei que neste Natal de 2019, da festa do ovo, do comércio e da maioria da população amargando as frustrações do pior ambiente político e econômico dos últimos tempos, volto minha atenção para as lembranças de natais passados, como Ebenezer Scrooge no conto de Dickens, a fim de me nutrir e buscar nelas as esperanças necessárias à transformação da realidade, nossa responsabilidade social que se apresenta para os próximos períodos. Dentre os registros armazenados no meu arquivo pessoal, saco, resgato e me apego às vivências dessas duas crianças, a Dandara e o Lenon, como símbolos de um aprendizado que, a exemplo do que cantaria o saudoso Belchior, “ainda sou estudante da vida que eu quero dar”.
Venha logo, seu 2020! Pois quero muito lhe usar.