7:23Presente de Natal I

por Thea Tavares

O apelo comercial dessa época do ano impulsiona a gente a fatalmente não escapar das convenções e imposições criadas para celebrar mais a hipocrisia social do que as relações humanas de fato. Começa com os amigos secretos de firma e se estende pelas programações das férias escolares, fechando um ciclo lá nos festejos da Páscoa, depois da permissividade de todos os pecados e dispêndios carnavalescos. Justificativas religiosas (e pagãs) não faltam para ditar como devemos presentear os outros e demonstrar todo o nosso apreço e felicidade, com direito a selfie que registre, ateste e documente para a posteridade a necessária exposição da própria generosidade. Em alguns países, se presenteia a criançada no 6 de janeiro, Dia de Reis. A banda pragmática e avarenta da sociedade agradece essa cultura e simbologia, pois casam direitinho com o calendário também das promoções para queima de estoques do que encalhou nas prateleiras no final do ano.

Fala sério! O cenário consumista todo nos motiva, sim, a nutrir uma certa inquietação, parecida com a do adolescente Holden no famoso romance de Salinger “O apanhador no campo de centeio” e eleger como hino de natal predileto não a famosa interpretação da Simone, que virou meme de protestos diante de um espírito natalino com cara de Família Margarina, mas a resgatar das veias rebeldes e contestadoras o Papai Noel do grupo Garotos Podres, nas suas versões e nomes diferentes para driblar a censura babaca. Aliás, pergunto-me como é que foi tão fácil fazer adequações no repertório da banda!? As letras inteiras são pura subversão aos costumes e padrões ditados no manual de “bom comportamento”. Enfim, só a menção desse clássico do movimento punk é farta fonte de diversão.

Por sinal, anos atrás, numa tarde do feriado de natal, estava com a filha na sala de casa e escutava na rádio Educativa do Paraná uma seleção de músicas brasileiras com a temática da data. A menina riu até chorar e doer a barriga da letra da música e eu pensei o quanto da inteligência da pequena aquela manifestação de humor, ironia e de pensamento crítico já denunciava para nos contar sobre sua personalidade. Não lembro se o programa na época era assinado pelo Sérgio Silva, que eu adorava ouvir, ou por outro profissional de uma Educativa que não existe mais, mas fica aqui minha gratidão eterna por aquele inesperado e marcante momento de alegria e de espontaneidade.

Dias atrás, por sua vez, mencionei sem querer a canção na frente de outra criança que riu largo, gargalhou gostoso e eu me vi em pânico, pensando na possibilidade de ela falar a respeito na escola para desespero da diretora, professores e para provocar a convocação em regime de urgência de uma sessão de descarrego ou de exorcismo de toda a família daquela criança. Por sorte, o ano letivo chegou ao fim sem que tal banimento social fosse sequer cogitado. É fato inconteste que o nosso mundo era mais divertido e criativo no tempo em que a Terra ainda era redonda! Ultimamente, tudo anda literalmente chato.

Mas o assunto dos presentes de natal remete a outras reflexões complementares. Presentear é uma manifestação de agradecimento, de reconhecimento. Não combina com algo simulado ou forçado. E dada a sua natureza espontânea e sincera, o melhor presente que podemos ofertar às pessoas que estão em nossa volta, que se importam ou que significam um laço de compromisso que queremos manter firme, seja no plano da interação pessoal ou voltado ao bem da coletividade, é a nossa presença, cuidado e o nosso sentimento.

Mostrei a uma colega de trabalho um projeto feito por uma amiga daqui de Curitiba, que se baseava em presentear uma sobrinha recém nascida com canções de ninar e clássicos da música popular brasileira com o nome da pequena. O resultado desse projeto em vídeo é de uma beleza que arranca lágrimas emocionadas e torna nosso espírito mais conectado com todas as energias do universo. Imaginar que os sonhos da menina serão embalados por essa carga de carinho e de bênçãos é muito gratificante. A colega para quem mostrei um dos vídeos também se emocionou ao recordar as palavras da sua mãe, que a ensinava que os melhores presentes são feitos por nossas próprias mãos e habilidades.  Aliás, foi justamente o que a minha amiga pensou ao idealizar o projeto: presentear com seu canto e, dessa forma, contribuir na formação daquela futura adulta, projetada a partir dessa acolhida amorosa.

Claro que é muito mais fácil entrar numa loja – embora, nesta época do ano, isso nos encha de preguiça – e comprar algo que satisfaça, por um lado, a necessidade de prestar contas à sociedade do seu caráter confiável, e, por outro, a necessidade material da pessoa presenteada de se sentir querida e lembrada. Mas se a gente puder gastar um pouco mais de tempo, de cuidados e de reflexão mesmo sobre quem é que vai receber seu gesto de carinho, o ideal seria construir algo simples, bonito e que represente essa gratidão. Vale também e mais ainda passar um tempo com a pessoa, o que significa presentear com atenção.

Quer saber? Se estas reflexões lhe servem de alguma inspiração, ótimo! Se não, deixe quieto. Faça o que bem entender. Ninguém merece uma cagação de regra sobre como as pessoas devem gastar seu dinheiro suado ou demonstrar afeição nessa época do ano! De velho “batuta” – ou com o adjetivo original, que foi censurado – já basta o Papai Noel do Garotos Podres. Seja feliz com sua árvore nevada e luzes, com seu peru e seu pavê, ao som de “Então, é Natal” (na versão da Simone mesmo e não naquele meme da festa do ovo). Também vale dar uma reprisada no especial de fim de ano do Roberto Carlos para a Rede Globo e, assim, fechar com chave de ouro (#SQN) a tradição masoquista da nossa gente de bem. Não é o Carnaval cantado por Chico Buarque, mas lembra muito “o estandarte do sanatório geral”. Vai passar!

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