Que seja Paraisópolis o nome do novo símbolo do nosso inferno social é uma ironia cruel e grosseira, o que a torna especialmente adequada aos tempos que o Brasil atravessa.
Tem nome de utopia a favela onde uma ação calamitosa da PM de João Doria (PSDB) deixou um rastro de nove jovens mortos. Todos pretos ou “quase pretos de tão pobres”, como diria certo incentivador do analfabetismo.
Paraisópolis, parente de Shangri-lá e Pasárgada, com nome de terra onde jorra leite e mel, vira de repente um deus nos acuda onde a vida de jovens brasileiros nada vale, apenas por serem pobres.
Não importam os supostos tiros de um cara numa alegada moto. Usar isso para justificar a ação que resultou na morte de nove pessoas aleatórias, garotos e garotas na flor da idade, é desumano.
Então o jogo é esse?
Estaremos dispostos a admitir a nós mesmos, como sociedade, que as vidas de Paraisópolis contam zero —o que, vamos combinar, fica bem abaixo do valor que damos à nossa vida, e à dos que amamos?
Vamos mesmo fundar nosso combalido projeto de nação na ideia de que a lei do silêncio ou o medo de ter o celular roubado justificam ir tão longe? Eis a escolha que se impõe neste limiar de novos anos 20 à brava (ou covarde?) gente brasileira.
A escolha é política e, claro, moral. O Brasil é um país que foi erguido pelo trabalho escravo, mas nunca saldou seu imenso passivo trabalhista. Os juros se acumularam.
Deve muito a gente demais. Foi um erro fatal abolir a escravidão sem um projeto mínimo de amparo do Estado aos milhões que foram postos na rua e condenados, sem educação, a tentar sobreviver nas gretas.
Talvez nossa elite esperasse que apenas morressem. Abolida na lei do país, a escravidão é mais difícil de
erradicar das almas.
Bom, não morreram. Se multiplicaram e deram ao Brasil a maior parte do que ele tem de melhor. E nem assim o tumor escravocrata, grande e maligno, foi arrancado do organismo.
O tumor insiste que os mortos de Paraisópolis podem até ser pessoas, mas são diferentes de nós. Pessoal do porão. É nesse momento que nos vemos numa nítida bifurcação.
De um lado, continuamos matando inocentes e culpados pobres para garantir a cada vez mais periclitante segurança dos inocentes e culpados que não são pobres.
Do outro, paramos de fazer isso —que é, além de monstruoso, tão burro e contraproducente quanto a guerra às drogas— e buscamos um modo de civilizar a capitania do mato chamada PM. Utopia?
Vamos raciocinar. Quantas cabeças a bandidagem ganha cada vez que o Éden vira o Tártaro? Imagine-se em Shangri-lá, digo, Paraisópolis. Você tem um primo chamado Denys, que morreu brutalizado. Estaria de boa agora? Ou cheio de revolta e anseios de vingança?
A bifurcação tem desenho político claro. Quem está com Bolsonaro costuma tomar o caminho em que, como disse Doria, não se muda nada: continuamos a matar “essa gente” —sim, a mesma do romance do Chico.
No outro caminho, freamos a sanha dos meganhas e construímos aos poucos (vai ser dureza) um país decente, dotado de uma política de segurança mais inteligente e menos preconceituosa, mais bem aparelhada e remunerada, mais precisa nos confrontos.
Ah, e também de uma Justiça que discrimine menos por classe e cor, bem como de uma rede de serviços públicos que seja equipada com noções de cidadania e não viva para servir a si mesma. Nesse caminho, um dia Paraisópolis pode até redimir seu nome.
O que vai ser, Brasil?
*Publicado na Folha de S.Paulo
Onde estava o Conselho Tutelar para impedir a entrada de menores? Juizado de menores ainda existe? A Prefeitura foi comunicada do evento? A Secretaria de Segurança? E, principalmente, os pais sabiam o que seus filhos faziam?
Não desculpando a PM mas jogando o holofote para os outros atores da tragédia.
Minha filha aos 17 anos, ano passado, acompanhada pela mãe, foi impedida de desfilar em uma escola de samba aqui em Curitiba por não ter autorização do Juizado de Menores. Reitero: ACOMPANHADA PELA MÃE.
Responsabilidades devem ser compartilhadas.