Meus vivos-mortos estão perambulando pelas ruas. Ontem mesmo vi um, bem vestido, mochila nas costas, atravessando a avenida e arrastando um colchão velho e um cobertor. Procurava um buraco na selva da cidade para se esconder do que é impossível – os próprios demônios. Hoje vi outro, perto da favela, na avenida dos carrões reluzentes. Sinal vermelho, ia pedir uma moeda para quem pudesse, mas antes de sair do canteiro central, estacou, virou-se e vomitou algo esverdeado, escuro, talvez misturado com sangue. Limpou a boca e foi pedir o trocado. Para sair dali e buscar as pedras que aliviam a dor que ele nem sabe que sente. A calça jeans era uma sujeira só. O rosto deformado. Teria dentes? Meus vivos-mortos estão em toda parte. Alguns dos chamados cidadãos de bem olham com dó. Outros têm nojo. Outros ainda os eliminam a tiros, fogo. Vejo a paisagem e lembro que estive perto disso. Bem perto. A um passo de abandonar tudo para fugir do que não dá para fugir. A dor indescritível. O horror diário.