por Roberto Simon*
Temístocles da Graça Aranha esteve na Kristallnacht
“Sob o grosseiro pretexto de vingar a morte de um jovem secretário da embaixada alemã em Paris, os nazistas, dando mais uma prova das violências a que são capazes, investiram em massa, na madrugada de 10 (de novembro), contra todas as lojas pertencentes a judeus.”
Temístocles da Graça Aranha —o encarregado de negócios do Brasil em Berlim— havia acabado de testemunhar Kristallnacht, a Noite dos Cristais, que completa 81 anos. Seu relato confidencial ao Itamaraty, desde a primeira frase, não deixava dúvidas sobre a gravidade dos acontecimentos —nem sobre a posição de Graça Aranha diante da barbárie nazista.
No centro comercial de Kurfürstendamm, o diplomata nascido no Rio viu a depredação das lojas de judeus. “Policiais inertes assistiam ao espetáculo degradante com olhos benévolos e pareciam lastimar não participarem dos saques.”
Graça Aranha notava, ainda, o triunfo do império da mentira: Goebbels exaltava a reação “espontânea” da multidão, embora claramente se tratasse de uma operação coordenada do Partido Nazista.
Das 12 sinagogas de Berlim, três escaparam dos incêndios —não por piedade, relatou, mas porque o fogo ameaçaria casas vizinhas de nazistas. Bombeiros deixaram arder os templos religiosos, enquanto o “populacho” disputava símbolos judaicos como “troféus heroicos”.
“Milhões de pessoas gozavam bestialmente esse espetáculo único no século 20, numa das mais cultas capitais da Europa, que se ufana em ser um grande centro da inteligência do homem.” O nazismo tentava “sistematicamente destruir” qualquer resistência, explicava. Para Hannah Arendt, a Noite dos Cristais foi o marco inaugural do período totalitário nazista.
Antes, pensava-se que judeus viveriam —ainda que como cidadãos de segunda classe— na Alemanha. Kristallnacht revelou que o objetivo era, afinal, obliterar a presença judaica por onde reinasse o Terceiro Reich.
Havia poucos “israelitas brasileiros” na Alemanha, mas Graça Aranha trabalhou para resguardá-los. Ele teria sido o primeiro chefe de missão em Berlim a solicitar, ao Ministério de Assuntos Estrangeiros, proteção a seus judeus nacionais. Consulados brasileiros no país receberam ordens suas para investigar a situação e cuidar de judeus com nacionalidade do Brasil.
Manuel Bandeira escreveria, anos depois, um poema ao amigo, “Temístocles da Graça Aranha”: A aranha morde. A graça arranha. / E vale o gládio nu de Têmis. / Logo se vê que tu não temes / Temístocles da Graça Aranha.
O bravo encarregado de negócios em Berlim era um feixe de luz na escuridão do Itamaraty dos anos 1930. Brilharia ao lado do embaixador Luiz Martins de Souza Dantas, cujo heroísmo salvou cerca de 800 pessoas —mais da metade, judeus. Mas o racismo e o antissemitismo intoxicavam a chancelaria.
Para grande parte dos cônsules e embaixadores, havia uma rede judaica de banqueiros, donos de jornais e marxistas a conspirar mundialmente contra a civilização cristã.
Em documentos do Itamaraty, judeus eram descritos como “raça inassimilável” no Brasil.
Tivesse prevalecido essa visão, três avós meus não teriam deixado a Alemanha para encontrar a liberdade no Brasil. O texto que você acabou de ler, bem como seu autor, não existiriam.
81 anos depois, honrar a memória das vítimas e dos que desafiaram o nazifascismo segue como um dever inescapável.
Realmente bem escrito. Triste tealidade. E o homem não se corrige.