6:12Pequenas motivações bastam

por Thea Tavares

Os olhos brilhavam atrás daquelas lentes bifocais quando ela me revelou com entusiasmo, em tom arfante de quem empreendeu uma proeza: – Fui ao cinema! Sabe-se lá quanto tempo fazia desde a última fez em que foi a uma sessão e ela nem é muito chegada nesse tipo de programa. Sua vontade de falar, de se expressar e a necessidade de ganhar a atenção das pessoas próximas urgem com mais força e não permitem que possa se concentrar por mais de uma hora, duas horas, absorvendo diálogos e todas as sequências de um filme. Deve ter sido uma criança hiperativa ou com déficit de atenção, numa época em que isso era diagnosticado apenas como sapequice infantil.

Nem na TV, em casa, ela costuma ver filme. Mas desta vez, acompanhada do grupo de ginástica da Rua da Cidadania mais próxima de sua casa, ela foi ao cinema e não se aguentava de vontade de contar para todos a respeito desse acontecimento. Ir ao cinema para você, para mim ou para qualquer outra pessoa que tenha por hábito estar atenta e atualizada nas novidades em cartaz pode parecer um feito corriqueiro. Para ela, não. Era “a” novidade! Aos 74 anos, caminhando para os 75 na entrada de 2020, aquilo era motivação de uma temporada inteira.

Aprendi com ela e com o jeito com que assimila o passar do tempo, que a gente vive de pequenas-grandes motivações. Durante as atribulações da vida adulta, com todos seus compromissos, afazeres diversos, contas a pagar, obstáculos a superar, experiências a acumular, alegrias com que se abastecer – porque ninguém é de ferro – e vitórias a conquistar, a gente reclama da falta de tempo, embora nem perceba que ele não passa tão veloz – e feroz – assim. Quando a gente quer que o final do mês chegue, ele se arrasta. Mas quando a ampulheta do tempo sinaliza o seu esgotamento e, ironicamente, justo quando os dias parecem ter horas a mais, é que o tempo nos foge. Mais um ano está prestes a se acabar e percebemos o quanto ele passou rápido, quase tirando sarro da nossa apreensão.

Por sorte, ela tem aproveitado seu tempo de sobra para manter uma rotina ativa e para, de vez em quando, inovar em atividades que a sequestram da mesmice. As sanidades mental e física agradecem. Pequenas motivações iluminam seu registro histórico e geram mais entusiasmos para seguir em frente, sem pensar em cansaços, perdas ou limitações próprias dessa fase da vida, em que as mesmas pequenas motivações bastam para animar o cotidiano, colocar sorriso no rosto e ambicionar apenas colher todos os dias novidades e histórias para contar e entreter os outros.

Para reter aquele brilho nos olhos dela, estiquei a prosa sobre a inusitada ida ao cinema. – Que filme a senhora viu? Para minha surpresa, a resposta foi: – Não sei. Questionei: – Como assim? Será que não parou de falar e nem prestou atenção no filme? Ela respondeu: – Capaz! A professora sentou do meu lado, até da respiração eu controlava o volume. Segui sondando; Àquela altura, já estava para lá de intrigada: – Mas era sobre o quê?  E ela, apesar de não se lembrar do título do filme, foi narrando um pouco da trama: – Era com o Oscarito, sobre o Sputnik, o satélite, sabe?

Fui pesquisar na internet e achei a comédia brasileira, lançada mais de uma década antes de eu nascer. Aliás, ela seria solteira ainda, nem sonhava, no ano em que o filme foi colocado em cartaz pela primeira vez, que viria a ter uma “ninhada” de filhos para criar e que isso consumiria décadas de sua juventude. Que dobra no tempo essa! Fiquei encucada imaginando ela quietinha, vendo um filme com Oscarito, Jô Soares praticamente moleque ainda, Zezé Macedo, Norma Bengell… Mas também pensei no quanto aqueles olhos consumiram tudo o que se passava na sala e a quantidade de informações que assimilou naqueles instantes da sua motivação semanal.

O fisioterapeuta dela foi quem vibrou mais com a novidade. – Gostei bastante de ir e quero fazer outros passeios que aparecerem, prometeu ela para o doutor. De bingo da igreja ela já é freguesa cativa. Mas, agora, até para os bailes ela se propõe a ir. Ficou distante disso até então porque não gosta de dançar, mas disse que pode vir a frequentar só para olhar os outros na pista, conversar e fazer amizades. A certeza que tenho é de que o brilho nos olhos, com esse pique e essas metas estabelecidas, vai se manter cativante ainda por muito tempo.

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2 ideias sobre “Pequenas motivações bastam

  1. Zilma Padilha

    Que belo texto! Consegui ver o brilho nos olhos da senhorinha…e de repente lembrei que também sou uma!!!

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