por Miguel Sanches Neto
Durante anos, Jamil Snege (1939-2003) viveu esperando a hora de ser reconhecido nacionalmente. Dono de um estilo cuidadoso, contido e irônico, pertencia à família espiritual de Dalton Trevisan – de quem sofreu influência nos primeiros livros. Era um crítico refinado da cidade e um artista pronto para o exercício profundo da literatura, para a qual se sentia predestinado. Enquanto os tempos de realização literária não chegavam, ia gastando seu talento na prática da publicidade, principalmente na desértica seara da política paranaense, sem se esforçar para fazer sucesso nesse ramo do reclame, encarando-o como caso passageiro. Guardava-se para a mais que amada – a ficção.
Entre uma campanha e outra, com algum dinheiro no bolso, largava um livrinho magro e primorosamente produzido, que lhe rendia aplausos de um pequeno e fiel público, principalmente fora do Paraná. Mesmo esses opúsculos eram quase que arrancados do autor por amigos mais próximos. Conhecendo sua pegada, todos esperavam seu grande livro. E ele dava amostras, tira-gostos.
Talvez a consciência da situação preliminar dessa produção não o tenha estimulado a procurar editora. Era um autor autoimpresso, como gostava de se gabar. Não queria entrar no mercado editorial, ficava, desconfiado, à margem, atento ao leitor-amigo, correspondendo-se amorosamente como ele. Jamil não admitia intermediários entre o livro e o público – ele mesmo fazia o projeto gráfico, editava e distribuía, dialogando com quem manifestasse interesse. Na sua agência de publicidade, a legendária Beta, guardava uma lista das pessoas que haviam recebido o presente – quem não respondia era definitivamente cortado. Ele reclamou mais de uma vez: os novos livros têm sempre menos leitores. E os volumes impressos restavam em caixas pelos corredores da agência, esperando público.
Seus livros foram juntados – reuniões de textos avulsos, acumulados ao longo de anos: A mulher aranha (1972), Ficção onívora (1978), O jardim, a tempestade (1989), Senhor (1989), Os verões da grande leiloa branca (2000) e Como tornar-se invisível em Curitiba (2000). Aqui, crônicas, contos e principalmente microcontos (com linguagem poética) apareciam como peças de uma obra sem identidade estilística ou temática. Da experimentação ao texto místico, em tom de oração, o escritor testava seus instrumentos, tirando notas soltas. E caía em uma das armadilhas locais: o lance rápido, herança da lógica publicitária, como ele confessa em sua autobiografia: “Qualquer boa ideia deveria poder ser contida num comercial de 30 segundos”.
Mas havia outra vertente de sua obra: suas tentativas de articular um universo de linguagem e de situações mais variado e mais rico. Seu primeiro livro foi o romance Tempo sujo (1968), nascido sob o impacto da ditadura. Embora tenha tido boa recepção, nunca chegou – e isso aconteceu também com todos os outros – a ter nova edição. Depois, ele tentou o teatro com Asconfissões de Jean-Jacques Rousseau (1982), destilando pacientemente a autobiografia romanceada Como eu se fiz por si mesmo (1994).
O fechamento do relato é revelador: “Havia um rei, havia um reino; eu me errei”. Jamil Snege – tanto na publicidade quanto na literatura – seguiu propositalmente o caminho errado, recusando-se a qualquer tipo de pacto. Com essa primorosa autobiografia, ele enfim produzia um livro de peso, mas não se sentia intimamente realizado, vendo-a como algo perto da indecência, pois a escrita lhe tirava valiosas oportunidades de viver. Com segurança técnica para o grande romance, ele tenta equiparar-se aos grandes ficcionistas, mas o que publica é uma novelinha deliciosa, em seu estilo humorístico, agora mais leve, mas não menos ácido – Viver é prejudicial à saúde (1998). E o voo do romancista é bruscamente interrompido.
Quando perguntado sobre o que estava escrevendo, falava de seu grande projeto, um romance que transcorreria principalmente no século XVIII em Paranaguá, e anunciava o belíssimo título: O grande mar redondo. Seria um épico, com densidade de linguagem e de visão de mundo. Mas nunca terminava o livro nem o mostrava a ninguém, embora tenha publicado dois trechos na antologia Encontro das águas (1994). Crescia a sua fama de mestre do texto e sua obra não a acompanhava – nos últimos anos escrevia apenas crônicas para a Gazeta do Povo. Foi nesta fase que ele conseguiu colocar seus livros em uma livraria em São Paulo e em uma distribuidora do Rio, dilatando o círculo de leitores. Uma nova casa editorial propôs publicar toda a sua obra. O autor que nunca procurou editora nacional, era finalmente descoberto. Mas isso acontece na mesma época em que descobre o câncer que o mataria.
Antes, em 1993, em uma polêmica crônica dirigida ao crítico Wilson Martins, Jamil Snege lançava um desafio: “Arranje-me um patrocinador. Uma entidade cultural – pública ou privada – que se disponha a me oferecer uma bolsa de dois mil dólares por mês durante doze meses […]. Se ao cabo desse ano eu não produzir um romance ou novela tão bom quanto qualquer Garcia Márquez, atestado por uma banca de reconhecida competência, restituirei integralmente os 24 mil dólares acrescidos de juros de 6% ao ano”. A falta de uma estabilidade financeira proibia o grande romance. Um pouco antes de morrer, Jamil me passou os originais de O grande mar redondo. E me avisou, com toda a sinceridade que lhe era peculiar:
– Errei a mão neste livro. Ele está totalmente perdido.
Li e comprovei que ele tinha razão. O livro era um conjunto de textos desconexos. Conversamos sobre esse projeto um dia antes de sua morte. Ele queria ser um grande romancista, mas a província, sem nenhuma aposta em seus autores, fez com que sua vocação fosse gasta na profissão errada. Sua obra forte e fragmentária é uma antecipação do grande romancista que ele poderia ter sido.
*Texto publicado em 1 de julho de 2005 na revista Capital
Caríssimo Zé-Bebeto. Saudades do Turco Velho de Guerra. Mestre e amigo.