No seminário quase abandonado em Porto Velho os fantasmas eram alegres e nos cumprimentaram pela aventura. O quarto de um hotel em Cuiabá não tinha janela e era todo pintado de preto. A luz amarela no teto parecia feita de ouro. No Rio Madeira uma vila era habitada pelas crianças tão lindas, que o sorriso tímido e com dentes branquíssimos, contrastando com a cor marrom da pele, iluminava a noite sem lua. Ali a pousada foi a cela de uma delegacia que nunca recebia presos. Em Manaus o calor abafado fazia a roupa grudar no suor e o cheiro das ruas e do cais dos barcos para as longas viagens foi rememorado pelo texto de Milton Hatoum em Dois Irmãos – e a confissão feita para o próprio depois de uma palestra. Em Santarém a escada de madeira quase caindo do Hotel Mocorongo foi a passarela para a menina loira, americana, que nos acompanhou por um bom tempo. Havia mais gringos no barquinho atulhado de redes nas noites amazônicas. Um deles descia onde lhe dava na telha. Escrevia um livro. Desceu pela costa do Pacífico e anotava numa caderneta surrada tudo que lhe interessava dos lugares pessoas que encontrava. Era Holandês. Olhar o temporal caindo lá longe, feito cortina cinza sobre o mar de água doce. O motor a diesel nunca parava de trabalhar. Não se servia peixe naquela imensidão do Amazonas. Sempre galinha, macarrão e uma farinha de mandioca com grãos enormes. Numa noite de lua cheia, perseguimos o facho de prata nas águas sem fim. Numa madrugada, o delírio real. Do outro lado da margem, um transatlântico todo iluminado fazia o percurso inverso – de Belém a Manaus. Ali vi a mente de Federico Fellini criando uma das cenas daquele filme onde o mar era de plástico. Lá pra trás, na beira de um rio que era entroncamento da Transamazônica, ficou a lembrança de um homem dizendo que meus olhos eram de assassino profissional. Pode ser. Uma mochila tosca, verde exército, um chapéu de palha amassado e com aba caída, sandália de dedo -e o cabelo chegando ao meio das costas não combinava com a paisagem humana daquele pedaço do mundo. A chuva de Belém, as vielas e azulejos das casas de São Luis, o deslumbre de Alcântara… o embarque no ônibus e muitos dias na estrada de volta para o Sul. Nenhuma fumaça em um mês inteiro, apenas a marca eterna da alma de uma viagem ao coração desconhecido deste país que… Anos depois soube, num divã, que fiz tudo isso durante uma crise depressiva. A vontade de voltar sempre presente, porque tudo era mais, menos o Brasil quarenta anos depois.