por Thea Tavares
E não é que vaca de leite também tem “entressafra”? Elas precisam descansar uns meses sem produzir para voltar a dar leite de novo. Ouvi isso de uma agricultora que tem 45 vacas de leite e diz que só 17 delas estão em franca produção. Para dar de 12 a 13 litros diários durante cerca de sete meses, as vaquinhas descansam outros 60 a 90 dias, ficam “secas”, me contou a produtora. Claro que isso varia de vaca para vaca, conforme a alimentação, saúde e o manejo delas, se confinadas e recebendo comida só no cocho ou se são criadas soltas no pasto.
Tem até uma vacina, remédio, não sei ao certo, que faz com que os animais confinados possam produzir sem parar ao longo de três anos! Esta, daí, já é a realidade de grandes produtores, não da minha fonte. Nesses grandes confinamentos, geralmente associados a grandes laticínios, chega-se a inseminar as bichinhas para que fiquem prenhas e dêem ainda mais leite no período da amamentação. Só que quem vai ficar com o melhor e com a maior parte desse leite nem são os bezerros, que são logo separados das mães, mas somos nós, consumidores do leite e de seus derivados. Nem quero imaginar o que aconteceria com a humanidade se explodisse uma revolta como a do “Planeta dos Macacos”, só que protagonizada pelas nossas dóceis ruminantes. Infelizmente, na história bárbara do Brasil, já vimos ocorrerem episódios de tortura e crueldade institucionais com outras mães, as mulheres em regime de confinamento, e seus filhos. Temos de estar em permanente estado de alerta.
Voltando à vaca fria, literalmente, por que cargas resolvi falar das vaquinhas? Pode ser que tenha rolado alguma identificação, consciência de classe, sabe-se lá, mas fiquei intrigada e curiosa quando a agricultora me disse que só 17 das suas 45 cabeças estavam dando leite. Eu, urbanoide de nascença, nunca havia me tocado que não se tirava leite da vaca de leite todos os dias. Parecia tão óbvio, natural e lógico, que não imaginei nada diferente disso. Ria desse absurdo, mas foi uma novidade saber que as vacas também gozam de um merecido “pit stop”. Coloquei-me na situação da criança que a professora pede para desenhar um bichinho e ela imita os desenhos da Disney. São os únicos animais que conhece.
Enfim, a minha fonte, diante de inúmeras dificuldades, disse ainda que tem diminuído a quantidade de silagem para alimentar as vacas ano a ano e que pensa até em vender, se conseguisse, a sobra dessa alimentação animal. “Se me aparecesse alguém agora querendo comprar as vacas, venderia hoje mesmo. Venderia até a silagem”, disse ela, moradora do Sudoeste do Paraná. A região é a maior bacia leiteira do estado em número de produtores e fornece mais de um bilhão de litros por ano. É leite que não acaba mais. Será mesmo?
A prosa sobre as vaquinhas vem lembrar o quanto, num período de estagnação da economia, medidas como a derrubada de barreiras de importação e a importação em si de leite e seus derivados de países vizinhos e até dos mais distantes países que subsidiam e exportam sua produção para cá impactam no dia a dia dos pequenos produtores do interior do Paraná. É uma concorrência desleal, que gera exclusão, não competitividade. Novas regras sanitárias, sempre sob o apelo sedutor de melhoria da qualidade do produto e da saúde, empurradas sem cautela de cima pra baixo, também vão contribuir para banir famílias da atividade produtiva e selecionar quem pode continuar sobrevivendo e tirando seu sustento dela e quem perde esse direito. Quando se deveria orientar e mover esforços para melhorar o cotidiano de uma produção que gera renda e segurança alimentar, opta-se por excluir os pequenos. Lá pela metade do século passado, o vilão que assombrava o sono das famílias brasileiras era a carne de porco e passamos a importar raças europeias, que só comiam a ração estrangeira também, alimentando uma dependência irreversível e excludente.
Faz pouco tempo que aprendi ainda sobre a importância de uma simples rede de luz no interior para levar energia elétrica até os mais distantes rincões do país e, junto com ela, geladeiras, freezers, equipamentos que permitem refrigerar o leite e armazená-lo, possibilitando com que os pequenos agricultores possam não apenas produzir esse leite para o próprio sustento, mas guardar, vender, fazer queijo, transformar etc. Mas isso é outra história, que está virando passado remoto.
No mesmo Sudoeste da agricultora que me ensinou que vaca também tem “entressafra”, o fechamento de aviários e mensagens desastrosas do governo para o comércio exterior, com proporcional desastroso impacto sobre nossa balança comercial, têm frustrado esse setor primário e afetado a paisagem que a gente observa da estrada. Uma característica do Centro-Sul, as estufas de secagem das folhas de fumo, por exemplo, surgem cada vez mais no horizonte sudoestino em substituição às culturas de comida que se retraem. Quando o ideal seria converter as tóxicas lavouras de fumo em lotes produtores de alimentos, o cenário que se descortina é bem outro, vai na contramão.
Pensando nisso, fico sabendo da festa do leitão e que comunidades tradicionalmente produtoras se agitam para festejar seu bem sucedido desempenho na “safra” que passou. Daí vem a pergunta: no andar dessa carruagem, que colheita no futuro teremos para festejar e cultuar? Vai ter festa de queijo? Até quando? De milho? De frango? Do porco (e não me refiro às da torcida do Palmeiras)? Do mel, melado, das flores? O folclore, o calendário oficial e o turismo foram nutridos por esses cotidiano rural e modo de vida do interior do Brasil. No resto do mundo não é diferente. Quisera a gente tivesse coragem e sabedoria para cultivar com cuidado e com respeito o legado cultural e popular, incorporando melhorias e tecnologias, mas sem envenenar ou amputar nossas raízes.
Daqui a pouco, não restarão entressafras; Só contaremos perdas e lembranças nostálgicas: ali existiu uma comunidade, ali se fazia festa da colheita… O “ali” se foi! Nessa seleção nada natural, os alimentos plantados não são mais apenas comida, viraram moedas. E não existe ação mais atrasada, nociva e mais ancorada no passado da humanidade que a busca desesperada pela acumulação de riquezas em detrimento do bem comum. Essa cobiça está registrada nos livros de história e é ensinada nas salas de aula. Por isso que a agricultora que tem um pequeno sítio e que poderia continuar se alimentando e abastecendo os outros com o que produz na sua terrinha, movimentando a pequena economia da localidade em que vive, sem agredir a natureza, não cabe num mundo movido a ganâncias. Ela tem de se lascar para resistir e persistir nessa realidade. A gente aprende muito observando as vaquinhas. Só ainda não encontramos um caminho sólido para aprendermos a ser de fato gente e a nos importarmos com o que acontece com elas e com todos nós. Logo aparece uma besta e decreta que as pobrezinhas só evacuem dia sim, dia não. E com hora marcada!