por Antonio Delfim Netto
O que já era difícil antes do Twitter ficou muito pior
A verdadeira “república democrática” deve garantir a todos os seus membros: 1º) o pleno direito à vivência de sua cidadania, sem distinções identitárias; e 2º) a igualdade de oportunidades apoiada em políticas públicas que nivelam a capacidade cognitiva de todos, independentemente da história e da geografia de seus progenitores.
Todo cidadão sairá para a vida com os mesmos instrumentos para compreender o mundo. O ponto de chegada de cada um dependerá do seu esforço combinado com a sua sorte, e não mais das condições prevalecentes na partida!
Por que não se conseguiu, até agora, realizá-la?
Porque o homem costuma recusar, sem nenhuma razão objetiva, o conhecimento empírico quando este nega suas crenças pré-concebidas!
Por que uma mãe caridosa recusa para seu filho uma transfusão de sangue quando evidências empíricas de seus efeitos benéficos acumulam-se há pelo menos um século?
Por que um evangélico se recusa a aceitar o fato empiricamente comprovado de que a identidade sexual não é zero ou uma, mas todas as possibilidades e, por isso, quer “curar” o normal LGBT?
O governo Bolsonaro não quer aceitar que não há a forma de se construir uma sociedade civilizada sem políticas públicas focadas e apoiadas na evidência empírica, que obedece à metodologia científica universalmente aceita.
Como é evidente, a viabilidade da “república democrática” depende da construção de um consenso de tolerância entre seus membros com relação a todas as diferenças identitárias, o que exige um contrato social: uma Constituição —uma lei à qual todos se submeterão— sob o controle do Supremo Tribunal Federal, ele mesmo submetido a ela. Esse processo circular pode apresentar problemas lógicos insuspeitados quando há eventos dramáticos.
O que já era difícil antes do Twitter ficou muito pior. Todos o usam: líderes políticos, jornalistas, jovens e velhos, ricos e pobres. Vivemos uma espécie de “tuitercracia”, que produz “ondas de contágio” que podem ter graves consequências, uma vez que estimulam as diferenças identitárias.
Sua “voz” é flutuante, inconstante e costuma trocar de sinal quase instantaneamente, o que desmoraliza e destrói as instituições que ainda restam da democracia liberal. Esta que está sendo substituída, lentamente, pela iliberal, que não prioriza a liberdade nem o devido processo legal. Não vai terminar bem.
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Peço licença à Folha para manifestar aqui a minha solidariedade à família do enorme Clóvis Rossi. Nos ligaram 40 anos de respeito e admiração. Sua crítica elegante, inteligente e sofisticada fará muita falta ao conturbado Brasil que vivemos.