por Maria Hermínia Tavares de Almeida
Há demanda social e incentivo institucional para que juízes virem justiceiros
Estava certo o então primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, quando disse, em tom de blague, que “no processo de estabelecimento do governo da lei, os primeiros cinco séculos são os mais difíceis”.
O governo da lei é o núcleo do Estado democrático de Direito, delicado mecanismo institucional que rege as condutas de governantes e governados e os obriga a acatar as regras que o sustentam.
Ao impor limites às paixões, interesses e concepções individuais do que é justo ou injusto, o governo da lei funciona sob tensão, exposto ao perpétuo risco de serem atropeladas as normas que lhe dão arrimo. Foi o que fizeram, como se tornou público e notório, o então juiz e atual ministro da Justiça, Sergio Moro, e os procuradores que geraram a Operação Lava Jato.
As razões que os levaram a violar o Código de Ética da Magistratura e também, provavelmente, o Código do Processo Penal serão matéria de acrimonioso e duradouro debate.
Terão sido eles movidos pelo antipetismo, como há quem acuse? Ou pelo empenho em combater a corrupção amplamente disseminada entre muitas das agremiações que compõem nosso sistema partidário, como argumenta o procurador Deltan Dallagnol?
Nas duas hipóteses, uma coisa parece clara: antes de trocar a toga pela fatiota de ministro, Moro, com o apoio da turma da Lava Jato, já havia substituído as austeras vestes de juiz pelo manto do justiceiro.
Nisso, nem sequer foi original: Joaquim Barbosa, o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, a que o ministro Moro pretende ascender na primeira oportunidade, o envergara durante o mensalão. Ambos viraram heróis nacionais, máscaras e letras de marchinha de Carnaval, bonecos e faixas de passeata —além de protocandidatos ao Planalto.
Em sociedades em que a iniquidade reina e o sistema judiciário trava, a ânsia por justiça tende a se transformar em apoio a justiceiros que prometem punições puras e duras, mesmo ao preço de tratorar “formalidades” legais. O Brasil, onde o dinheiro movimenta com perversa desenvoltura as engrenagens do sistema político, não haveria de ser exceção.
Além disso, pesquisas revelam que uma parcela dos juízes e promotores, cujos poderes a Constituição de 1988 ampliou, passou a se ver não só como guardiães das leis e fiadores do devido processo legal, mas ainda como provedores de direitos que o Legislativo —visto como corrupto e reacionário— não se disporia a assegurar.
Há demanda social e incentivo institucional para que juízes se transformem em justiceiros. Ao fazê-lo, correm sempre o risco de atropelar as leis que lhes cabem proteger. Por quantos séculos mais?
*Publicado na Folha de S.Paulo