19:16Um passarinho de voo curto

por Boris Fausto

O mito Garrincha se constitui a partir de um núcleo central. Na história do futebol brasileiro, talvez ele tenha sido o jogador que melhor sintetizou qualidade estética e eficiência. A arte se concentrava no balé desnorteante das fintas, vício transformado em virtude pela via das pernas tortas, tema já tão cantado e decantado que se tornou banal. Essa virtude, brilhante em si mesma, estava também a serviço de um objetivo fundamental: a busca do passe decisivo ou do gol, obtido a partir de um ângulo que fazia e faz coçar a cabeça dos matemáticos. Em poucas palavras, Garrincha não era um viciado da finta pela finta, como tantos outros jogadores que chegam a driblar a própria sombra: era um artista da bola, não de circo, com todo o respeito devido a estes últimos. 

A síntese realizada por Garrincha encarna tudo que o torcedor brasileiro espera de seus grandes times e de seus astros de futebol. O torcedor não se contenta apenas com a vitória. Ela só é plena quando vem acompanhada da qualidade artística individual e coletiva, da demonstração de uma imensa superioridade sobre o adversário, no plano da eficácia e da estética. Vitórias com Garrincha em campo eram sempre desse tipo, triunfos na plenitude da expressão. 

Para reforçar a constatação, podemos lembrar o que ocorreu, no ano passado, com a conquista do tetracampeonato mundial. A mídia soprou os clarins, saudando a façanha inédita, mas a verdade é que, entre a população, se houve alegria pela obtenção do título, não houve euforia. A alegria é facilmente explicável. Uma conquista dessas passa para os anais da história, no caso, os almanaques esportivos; com o passar do tempo, a forma da conquista vai se diluindo, eternizando-se a irrefutabilidade dos números.

A euforia nasce de uma explosão que se segue imediatamente ao acontecimento. Como poderia haver euforia com um título obtido por um time amarrado a um esquema tático sem brilho, resultando em penosas vitórias. Como poderia haver euforia diante de uma vitória final sem gols, obtida ironicamente graças a um raro dia de inspiração celeste de Taffarel? 

Por outro lado, Garrincha representou uma versão radical de uma época do futebol brasileiro que começava a desaparecer em seu tempo: a época da profissionalização incipiente, que se traduzia nos baixos salários, na emotividade dos dirigentes, na recusa a conspurcar as sagradas camisas com propaganda comercial. Os astros do passado ganharam apelidos fantásticos -Domingos da Guia, o Divino Mestre; Leônidas da Silva, o Homem de Borracha-, mas não ganharam muito dinheiro. 


Além disso, o baixo grau de profissionalização, refletido em menores exigências com relação ao jogador, a perplexidade deste diante da fama resultaram na aparição de figuras boêmias, propensas à autodestruição, de que Garrincha foi um claro exemplo. Esse fato não se restringiu ao futebol, mas a outras formas do lazer de consumo popular, que tinham também características de baixa profissionalização, como se pode constatar, no caso da música, com os exemplos de um Sinhô, de um Noel Rosa e de tantos outros. 

Nossa modernidade esportiva, a exemplo da sócio-política, carrega e combina traços do passado. Basta lembrar os calendários desvairados, ou a flutuação no sistema de pontuação, que os dirigentes impõem ao cada vez mais arredio torcedor. Apesar disso, não há dúvida de que a modernidade chegou e chegou pela via da globalização. 

A mudança correspondeu, em parte, a um capítulo pouco explorado da sociologia esportiva, ou seja, a implantação do futebol em novas regiões do mundo, como a Arábia Saudita, os reinos dourados do golfo Pérsico e o Japão. A Arábia foi a primeira Meca da globalização, exigindo de técnicos, jogadores e suas famílias, um enorme esforço de adaptação. O mundo esportivo árabe era difícil de ser decifrado, pois combinava riqueza com estruturas organizatórias unipessoais: os altos salários dependiam da boa vontade dos príncipes, donos dos clubes e dos passes, gente acostumada a impor sua vontade. 

Porém não foi por acaso que a Europa ocidental atraiu com maior constância e êxito os grandes nomes do futebol brasileiro. A prosperidade generalizada dos vários países e o grau de organização possibilitaram a implantação de um futebol altamente profissionalizado, a que nossos astros se adaptaram com enorme êxito. 

Nada mais distante do mundo de Garrincha do que o futebol globalizado. Não é possível imaginá-lo às voltas com os contratos milionários, com a adaptação ao ambiente, com as exigências impostas por uma rigorosa profissionalização. Diante das mulheres veladas, das regras de abstinência, dos homens e mulheres de olhinho puxado, Garrincha se sentiria completamente perdido. 
Alguém poderia dizer, comparativamente, que os tempos de hoje perderam a graça, que a graça estava na improvisação e na espontaneidade absolutas, na liberdade irresponsável do jogador, fugindo às artimanhas dos dirigentes. 
Mesmo reconhecendo as mazelas do presente, é bom lembrar que essa atitude corresponde a uma idealização do passado. Neste sentido, a história de Garrincha é exemplar. É evidente que na sua trajetória existem traços marcadamente pessoais sugeridos, por exemplo, pelos destinos contrastantes dele e de Pelé. Mas esses traços se combinam com as características organizatórias do futebol de uma época finda. 

Na carreira de Garrincha, essa combinação se revela em muitos aspectos: na incapacidade de gerir seus recursos -seria simplificador pôr toda a culpa nos dirigentes; na despreocupação com os esquemas táticos e com a natureza do adversário, gerando tantas anedotas, verdadeiras ou não; na propensão à autodestruição, sobretudo quando o inevitável declínio seguiu-se aos anos de glória. 

Garrincha alegria do povo? É claro que sim. Garrincha um homem realizado e, sobretudo, feliz? Difícil acreditar. Há muito de tragédia pessoal, por trás das histórias engraçadas, contadas a seu respeito. Se foi um passarinho, como tantas vezes se disse, não foi dessas aves migratórias que conhecem seu rumo e atravessam os oceanos, como Zico, Júnior, ou Roberto Carlos, nos dias de hoje. Foi -isto sim- um passarinho de vôo curto, solto no espaço, cujo canto, a um tempo alegre e triste, nos encantou para sempre.

* Texto publicado na FSP em 22/10/1995 

*Boris Fausto é historiador; professor do departamento de ciência política da USP e autor “A Revolução de 30 – História e Historiografia´´ (Brasiliense) e de “História do Brasil´´ (Edusp)

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