por Ricardo Araújo Pereira
A tecnofilia, uma das perversões que mais me assustam, tem certas manifestações bastante sutis.
Por exemplo, sempre que alguém que escreve, canta ou representa diz que produz conteúdos para a internet, fico um pouco arrepiado.
Nunca, em toda a história do mundo, um vinicultor disse que produzia conteúdos para garrafas, porque o vinicultor respeita demasiado o vinho para dizer uma coisa dessas. Até porque não está particularmente deslumbrado com a existência de garrafas. Sim, garrafas são úteis, mas o que interessa é o vinho.
No entanto, há artistas que têm tal admiração pela internet que se satisfazem em dizer que produzem conteúdos para lá.
Se, em 1990, eu fosse à banca comprar o jornal e o vendedor me perguntasse o nome e o número do telefone, eu não compraria. Iria a outra banca, comprar de um vendedor menos intrometido.
Hoje, se eu quero comprar um jornal na internet, forneço esses e outros dados.
Se o vendedor de 1990 ficasse a ver-me a ler o jornal, a registrar as notícias que me interessavam mais e depois fosse vender essas informações a empresas, eu chamaria a polícia.
Se ele tentasse introduzir-me um cookie para me reconhecer da próxima vez que me visse, em princípio seria preso.
A gente não tolera a mais ninguém aquilo que a internet nos faz.
Há dias quis ver um vídeo e fiquei com a falangeta que manobra o botão do mouse em carne viva.
Um clique para abrir o site. Outro para concordar com a política de cookies do site. Outro para impedir que o site passe a enviar-me notificações. Outro para ligar o vídeo. Outro para fechar um pop up porque o símbolo de ligar o vídeo era falso. Outro para voltar a ligar o vídeo. Outro para pular o anúncio. Outro para fechar o site porque entretanto tinha passado meia hora e eu já não me lembrava de que vídeo era aquele que eu queria ver.
É o equivalente a falar com uma pessoa chata. Antes de terminar a história faz vários apartes sem interesse.
E, completamente sem aviso, ainda pergunta se queremos aumentar o pênis. Se a internet fosse uma pessoa, levava surras todos os dias.
*Publicado na Folha de S.Paulo