11:21Lixão atômico

Acompanhar a política brasileira é tão legal quanto passear num lixão atômico. Afora uma ou outra pilhéria —como chamar o ministro bravinho de tchutchuca—, a pestilência que o Planalto irradia provoca engulhos. Dada a natureza radiativa dos poderosos de turno, e do fato de terem sido eleitos, estamos fadados a ficar um tempo em Fukushima.

Além do empobrecimento material, a contaminação envenena a cultura. Cinema, música, literatura e artes plásticas andam entorpecidos. Silêncio e renúncia são subprodutos da ruína atômica que Brasília erige. (Mario Sergio Conti)

Novas massas contra a velha política

A história procura saídas nos dois lados do mar Mediterrâneo

Acompanhar a política brasileira é tão legal quanto passear num lixão atômico. Afora uma ou outra pilhéria —como chamar o ministro bravinho de tchutchuca—, a pestilência que o Planalto irradia provoca engulhos. Dada a natureza radiativa dos poderosos de turno, e do fato de terem sido eleitos, estamos fadados a ficar um tempo em Fukushima.

Além do empobrecimento material, a contaminação envenena a cultura. Cinema, música, literatura e artes plásticas andam entorpecidos. Silêncio e renúncia são subprodutos da ruína atômica que Brasília erige. Melhor então olhar para fora.

Não que os outros países estejam uma maravilha. Mas como só sairemos do fundo do fosso quando nos pusermos em movimento, e isso está a ocorrer nos dois lados do Mediterrâneo, é instrutivo acompanhar o que lá se passa. Novas massas se chocam com a velha política.

Quem são os coletes amarelos? São pessoas que têm automóvel. Elas saíram a campo para pedir o congelamento dos impostos sobre o combustível. Estão longe da política tradicional e não têm utopia. São pão-pão, queijo-queijo. Obtiveram o fim das taxas, mas não voltaram para casa.

Passaram a pedir o que lhes é negado há décadas: um Estado. De direita ou esquerda, os sucessivos governos sucatearam os serviços públicos na zona rural. Ônibus, trens, escolas, hospitais e asilos para idosos definharam. Os coletes precisam deles.

Macron respondeu-lhes como um Bourbon. Com a mão esquerda, convidou-os os ao diálogo; com a direita, desceu-lhes o sarrafo. Segundo o criminologista Fabian Jobard, sua proposta do Grande Debate convive com o maior número de manifestantes feridos desde maio de 1968.

Em contrapartida, as discussões que Macron promoveu para auscultar o populacho atraíram dezenas de milhares de provincianos. Mesmo sabendo que o debate é consultivo —ou seja, visa anestesiá-los e enquadrá-los— querem dizer o que pensam.

O “Grand Débat” repete os “Cahiers de Doléances”, os cadernos de queixas por meio dos quais Luís 16 ouviu os reclamos do terceiro estado (o primeiro era a nobreza; o segundo, o clero). Mas como se dispôs a dar ouvidos aos queixosos só em 1789, não teve tempo de manter a cabeça.

Os coletes amarelos puseram no mapa um setor das classes populares. Eles estão longe operariado, que perde peso social em virtude da desindustrialização promovida pela União Europeia. Nas últimas eleições, o velho proletariado, desempregado e desmoralizado, deu uma banana para o Partido Socialista, que o traiu de modo ainda mais abominável que o PT aqui.

Os amarelos são brancos: estão sociológica e geograficamente a quilômetros dos “banlieues”. Nas periferias das metrópoles, também elas abandonadas pelo Estado, os trabalhadores são bem mais pobres que os caipiras. Eles descendem de negros vindos do norte da África, sobretudo da Argélia, onde, na semana passada…

Antes de ir a Argel, um pit stop no Brasil. Aqui também grandes protestos tiveram como mote o direito de ir e vir. As manifestações-monstro de 2013 foram provocadas pelo aumento do preço das passagens de ônibus e metrô. E marcaram o começo do fim do reinado petista.

No ano passado, à lá gilets jaunes, um protesto explodiu no interior contra aumentos do preço do diesel. Caminhoneiros pararam o Brasil por uma semana. Brasília voltou atrás, mas, novamente, já era tarde: a extrema direita, com um candidato ao Planalto, capitalizou a vitória.

Agora, a Argélia. Uma insurreição derrubou em apenas seis semanas o governo de Abdelaziz Bouteflika. Ele foi um quadro histórico da Frente de Libertação Nacional, que liderou a guerra pela independência, proclamada em 1962. Elegeu-se presidente há 20 anos, juntou seus parentes com grupos mafiosos e governou com mão de ferro.

Bouteflika teve um AVC em 2013. Não apareceu mais em público e passou a viver em hospitais de Grenoble e Genebra. Não obstante, anunciou-se que disputaria um quinto mandato. A Argélia veio abaixo: todas as sextas-feiras, milhões de pessoas paravam o país.

Ele renunciou na segunda-feira passada. Ontem, porém, as mesmas multidões tomaram Argel, Oram e Constantine. Os protestos têm traços das insurgências do século 21, da Primavera Árabe à praça Maidan, na Ucrânia. Mas lembram mais revoluções de séculos anteriores.

Porque os argelinos pedem liberdade, igualdade, fim dois privilégios e cana para os corruptos. Querem, veja só, uma Assembleia Constituinte. O Mediterrâneo em Argel tem a mesma cor do Atlântico no Rio.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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