De Dalton Trevisan
Só, condenado a si mesmo, fora do mundo, o espião espia. Eis um casarão cinzento, janelas quadradas, muro faiscante de caco de vidro. Posto não o deseje, conhece os eventos principais do edifício, cujas letras na fachada – porventura o nome de um santo – não consegue distinguir, cada vez mais míope. Surpreendeu o pai chegando com a menina pela mão. Alto, bigode grisalho, manta de lã ao pescoço, grandes botas. A menina, quatro anos, miúda, perna tão fina, um espanto que ficasse em pé. A mãozinha suada – o espião podia supor, pelo seu tipo nervoso, que a menina, emocionada porque se despedia do pai, tivesse a mão úmida de terror – apertava um pacote, amarrando com barbante grosseiro, onde trazia todos os bens: muda de roupa, e quem sabe, punhado de bala azedinha.
Empertigado, o pai conversava com a freira de óculos. Explicava – assim imaginou o espião na sua torre – que a mulher pintou de vermelho a boca e se perdeu no mundo, abandonando-o com a filha. Internava-a no casarão, dela não podia cuidar – era viajante, negociava galinha e porco. Ajoelhou-se o homem, a menina prendeu-lhe os bracinhos no pescoço, não queria deixá-lo sair. Sujeito duro, ressentido pela traição, rompeu o abraço, a filha chorando no pátio.
Oitenta meninas, entre cinco e onze anos, em todo esse povinho nenhum riso. Brincam em sossego com seus trapinhos, carretéis vazios e – as mais fortunadas – bruxas de pano. Durante a semana usam avental riscado e, no domingo, o vestidinho xadrez agora pendurado no corredor. Cada prego um número: de um lado, o vestido xadrez e, do outro, o casaquinho de algodão.
Desde os seis anos fazem todo o serviço: arrumam a cama, esfregam o soalho de tábua, varrem o pátio. À tarde, entre as ladainhas, ocupam-se umas a bordar, outras a costurar e, antes que chegue a noite, apertando o olho e curvando a cabecinha, escutam distraídas a voz abafada da cidade (as horas no relógio da igreja, o chiado de uma carroça, o apito do trem) e, inesperadamente, acima do trisso das andorinhas e do latido do cachorro, o riso de uma criança brincando ao sol.
Para a menor de cinco anos é escolhida outra de onze, que dorme na cama ao lado, lava-lhe o rosto, corta-lhe a unha (se não foi roída até o sabugo) e limpa-a no gabinete. Procissão de duplas inseparáveis, cumprindo voltas no pátio, o pezinho rachado de frio – a menor com uma vela escorrendo do nariz, a mãozinha enrolando a barra do vestido. Se choraminga, a outra ralha: não seja nojenta, não seja pidona. E vá cascudo na cabecinha mole da menor. Às vezes, a maior, raquítica, é do mesmo tamanho. Tão diversas, são todas iguais nos olhos que enchem a cara miudinha – o olho aflito do adulto.
Umas cuidam bem de suas protegidas, assim a galinha com o pintinho. Ah, criatura mais perversa não existe que a criança doente de solidão: essa judia da amiguinha, castiga-a, devora a milagrosa – embora azeda – laranja que, saiba você como, surgiu entre os dedinhos rapinantes, sem dar um gomo à companheira, que engole em seco. E se não bastasse, espreme a casca no seu olhinho guloso. Se a menor faz xixi na cama, denunciada à vigilante, que exibe no pátio – o lençol na cabeça até secar.
A um canto, estalam os lábios duas mãezinhas de volta da feira:
— Esta menina é muito nojenta.
— É. Mas aqui ela perde o luxo.
Há o pavilhão das velhas – nove ou dez, as que ninguém quis, uma paralítica, outra surda-muda, outra retardada de meningite – que vivem isoladas, gritam em noite de lua, soluçam dormindo e não podem ver homem sem arregaçar a saia. Chamadas de bobas, também têm serventia: lidam na horta, racham lenha, puxam água do poço. As meninas admiram em silêncio as velhas, que tanto balançam a cabeça quanto o balde na mão – praga de boba pega.
Bem cedinho, em fila de duas, marcham para a igreja. Antes de sair, calçam as alpargatas e correm alegres, única vez que usam alpargatas, desapercebidas da traição dos caminhos. Lá se vão, olho arregalado sob a franjinha – todas de franjinha na testa pálida, a não ser as pretinhas, por isso mais infelizes. No fim as bobas, sacudindo a cabeça em toucas verdes de crochê, enterradas até a orelha, e que se agitam ao dar com um padre na rua: cada padre, um beliscão na vizinha.
Domingo frequentam a missa das nove, as meninas marcando o passo arrastam as alpargatas, não muito para não gastar o solado. Escondem as bobas a medonha boca sem dente e piscam divertidas para uma estampa de Nossa Senhora com o menino – a pombinha de fora. Triste é a volta: cruzam com as crianças, as outras, no vestidinho de tafetá colorido e fitas na longa cabeleira, a lamber deliciadas um canudinho de sorvete.
Na primeira comunhão, senhora piedosa entrega na portaria uma forma de cuque, em fatias bem pequenas. Domingo a solidão dói mais: a chegada de alguém lembra a visita que nunca virá. Andam inutilmente à volta do pátio, cantam em vozes apagadas as suas canções de roda, vestem e desvestem as bruxinhas de pano, beliscam-se inquietas, choramingam e – depois que o alguém se retira – muitas são postas de castigo, ajoelhadas sobre grãos de milho.
Não se queixam – como a gente lá fora — quando chove no domingo é doce ouvir a chuva. Um relâmpago incendeia as janelas, o raio abafa o gritinho das mais assustadas, as bobas arrastam latas sob as goteiras. Burlando a vigilância, algumas chapinham nas praças, os cabelos escorrem água. Outras desenham boneco no vidro embaçado.
Inventam os brinquedos: corrida de besouro, um telefone a tampinha no barbante estendido, espiam a formiga de trouxa na cabeça, prendem o vaga-lume na garrafa para vê-lo a um canto escuro acender sua lanterninha. Sem receio de berruga no dedo, agarram o sapo e atiram-no para o alto, batendo palmas enquanto cai esperneando e esborracha-se no chão.
Ah, quando chega a noite, as que varrem, olham para trás e varrem mais depressa, as que costuram, curvam os ombros e não descansam a agulha entre os dedos furadinhos, e as que andam de mão dada no pátio acercam-se uma da outra – elas fazem tudo para que a noite não chegue, a noite maldita dos que têm medo. E a noite chega na asa dos pardais que se empurram entre as folhas, chega no latir perdido de um cachorro ao longe, chega com a sineta no fundo do corredor assombrado e, após a xícara de chá e a fatia de polenta fria, rezada a última prece, recolhem-se ao dormitório, encolhidas na cama, só a pontinha do nariz de fora. Ao lado da porta, escondida no biombo de pano, a vigilante apaga a luz. Morrem de medo no escuro e a quem, meu Deus, gritar por socorro? Escutam os sapos do banhado: durma menina, o bicho vem te pegar. O assobio da coruja no cedro, as unhas do morcego que riscam a vidraça – vem te pegar, menina, acuda que vem te chupar o pescoço.
As que não são mais meninas pensam no fim que as espera: devolvidas a algum parente que não as quer, escravas da patroa que fecha o guarda-comida à chave, as mais bonitinhas desfrutadas pelo patrão e pelo filho do patrão. Nenhuma esqueceu as palavras de Alberta, a negrinha que caiu na vida: Minha novena agora é homem. Reboa no coraçãozinho apertado de angústia a profecia da superiora: o diabo solto no mundo. Única salvação, minhas filhas, é a prece. E elas rezam, rezam até que vem o sono.
Em surdina o queixume de uma menor. Ganido de cachorrinho perdido na noite? Dor de dente ou bichas ou, quem sabe, simples medo que uma boba venha se esfregar e acorde com papo de velha. Ninguém atende, os soluços vão espaçando, ela dorme.
Sonham as mais felizes com a pombinha branca. Foi o caso que uma boba domesticou de sua cadeira de rodas uma pombinha. Onde ia ela, ia a pombinha, só se afastava por ligeiro voo ao redor do pátio – a paralítica estalava os dedos de aflição. Trazia uma vara na mão, sebosa de tanto a alisar: a ave prisioneira no círculo de alguns metros. Da varinha saltava para o seu ombro, as duas beijavam-se na boca. As meninas faziam roda, assustadas com a aleijada e deslumbradas com o bichinho pomposo, a cauda enfunada em leque, exibindo-se de galocha vermelha. De manhã, a pombinha morta. A paralítica gemeu sem sossego: a ave guardada numa caixa de sapato, não queria que a enterrassem. Para a acalmar, deram-lhe outra pombinha branca, e o que fez? Cravou-lhe no peito as agulhas de tricô.
O casarão mais fácil de sofrer se não estivessem famintas sempre; quando se deitam, até dormindo, uma ouve o marulhinho na barriga vazia da outra. Engole o grude nauseante – sopa de angu. Naco de carne uma vez por semana. Polenta fria no lugar de arroz. Se uma fruta lhes cai porventura na mão – figo ou caqui, por exemplo –, devoram-na com casca e tudo, a língua saburrosa de prêmio. Do capim chupam a doce aguinha. Comem terra e, algumas, o ouro do nariz. Outras têm ataques de bichas e rolam pelo chão rilhando os dentes.
Não bastasse a fome, o pavoroso banho frio de imersão, tomado de camisola. Uma das meninas adoece, isolada em quartinho escuro, nada a fazer senão esperar que definhe. Rezam o terço em volta da moribunda, o corpo encomendado na própria capela, o cemitério ali pertinho.
Eis que o pai voltou para visitar a filha ou levá-la consigo. Aguardando no pátio, a buscar entre tantas uma franjinha querida, nem reparou na freira de óculos que, em voz monótona, recomendava fosse forte e tivesse fé: a menina, coitadinha, morta e enterrada. Uma febre maligna. Ele viajava longe, por quem avisá-lo? O espião podia ler nos lábios do pai o que não disse: se fosse em casa, perto de mim… finar-se sozinha, certa de que a tinha abandonado. Sem ouvir a freira de óculos, o homem girava a aliança no dedo, eriçado de pelos ruivos.