7:22A violência e a morte

por Mário Montanha Teixeira Filho 

(O texto abaixo foi escrito em 7 de fevereiro de 2012. Dias antes, na madrugada de um domingo, 22 de janeiro, tropas da Polícia Militar de São Paulo, com o apoio da Guarda Municipal de São José dos Campos, cidade localizada no Vale do Paraíba, no interior do Estado, retiraram cerca de oito mil pessoas de uma ocupação que começou a ser organizada em 2004 por famílias que haviam sido expulsas de um terreno próximo, no local chamado Campo dos Alemães. Rapidamente, aquela porção de terra adquiriu as características de bairro. Recebeu o nome de Pinheirinho e se integrou ao cotidiano do município. A extensa área, de 1,3 milhão de metros quadrados, estava registrada em nome da massa falida de Selecta Comércio e Indústria S.A., empresa pertencente a Naji Nahas, um investidor que ganhou notoriedade pelos golpes que praticou contra a economia do País. A desocupação do Pinheirinho aconteceu quando a situação do imóvel estava prestes a ser regularizada. Uma liminar da 6ª Vara Cível de São José dos Campos autorizava a reintegração de posse; outra liminar, da Justiça Federal, proibia a intervenção policial. No auge do conflito, o Tribunal de Justiça, pela sua Presidência, determinou, unilateralmente e à margem das normas processuais, a intervenção policial. Dois mil soldados, utilizando-se de um arsenal de guerra, executaram a ordem que lhes foi dada por uma autoridade administrativa. Essa operação, realizada “em nome da lei e da ordem” – ou da preservação do direito sagrado de propriedade –, jogou uma população inteira no olho da rua. Transcorridos sete anos, o local onde se deu o massacre continua abandonado.)

Qual a medida da violência? Penso nisso enquanto as imagens da destruição do Pinheirinho martelam minha cabeça. Imagens insistentes, de perturbar o sono e me lançar à procura de explicações para uma realidade de traços duros, que assusta. Dizem as vozes da razão que, além e acima das vidas humanas que habitavam o Pinheirinho, está um direito maior, de dono, de senhor: o direito à propriedade privada, sagrado e natural. Consta dos ordenamentos, e não necessariamente dos búzios. Cumpra-se a lei, portanto.

Parece-me estranho, mas tento entender. Bacharel de pouca prática, recorro ao direito positivado, à sapiência dos jurisconsultos, à estrutura do Estado, aos tribunais superiores, com seus rituais severos e sua proclamada “neutralidade”, e não encontro nenhuma resposta para a tragédia que ocorreu naquela madrugada de um domingo triste. Mesmo diante da lei, da implacável “dura lex”, não há como compreender a violência do Pinheirinho. Não há o que justifique a violência no Pinheirinho.

Por instantes, então, abandono minhas convicções, jogo no lixo a subjetividade e ponho os olhos exclusivamente no sistema jurídico em vigor. Encontro, ali, princípios de aparência bela e democrática, interpretados por senhores de toga, expressão grave e reputação ilibada. Trata-se, eu sei, de ficção e ideologia. A mesma norma que anuncia “direitos e garantias fundamentais” converte-se, no intrincado processo hermenêutico da ciência jurídica, em instrumento legitimador de desigualdades absurdas, da força institucional, da ameaça das armas, da corrupção e da malandragem.

Considerando a improvável eficácia dos aborrecidos conjuntos de preâmbulos, títulos, subtítulos, capítulos, alíneas e mentiras que regulam nosso cotidiano, ainda assim não estaria explicado o pesadelo do Pinheirinho destruído. Tome-se o artigo 5º, XI, da Constituição cidadã: “A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Pois os antigos moradores do Pinheirinho não tiveram apenas violado o seu asilo: suas casas foram esmagadas por tratores e escavadeiras, escoltados por uma tropa de choque. Pode-se argumentar que aquela população não detinha títulos de propriedade, e que havia uma ordem judicial em favor da massa falida dona do terreno. Essa ideia pretensamente legalista, porém, desconsidera um pressuposto elementar, colocado no inciso XXIII daquele mesmo artigo 5º: “A propriedade atenderá a sua função social”.

Um dispositivo assim, tão abrangente em sua simplicidade, conduz a perguntas inevitáveis: que tipo de função social se espera do Pinheirinho nas mãos da Selecta, massa falida controlada por Naji Nahas, um especulador envolvido em crimes contra a economia do País? Quais os “segredos” que cercaram a desocupação? Quantas conversas de bastidores, quantas negociações antecederam as doutas sentenças que ordenaram a ação truculenta da PM? Por que a pressa em retirar cerca de duas mil famílias de seus abrigos?

Caberia à Justiça do Estado de São Paulo, pela juíza que concedeu a liminar de reintegração de posse e pelo presidente do Tribunal egrégio, dizer por que avalizou as estripulias de um notório representante da elite de colarinho branco. Seus porta-vozes bem que se esmeraram. Postados diante de microfones e repórteres curiosos, ensinaram, enforcados em suas gravatas, como os dogmas do mundo jurídico se amoldam aos interesses do mercado e seus operadores. Sustentaram, candidamente, que a PM obedeceu a uma determinação judicial, num discurso que só mesmo o cinismo de quem não se importou com o massacre poderia conceber.

Existia, em termos concretos, um conflito de competência entre duas esferas do Judiciário. Quando a investida policial teve início – ainda no escuro da noite, e não durante o dia, como rezam os códigos (códigos rezam?) –, outra liminar, esta da Justiça Federal, estava em vigor e assegurava a integridade física dos moradores do Pinheirinho e a preservação das suas casas. Além do mais, avançavam negociações para a regularização da área ocupada.

Formou-se uma complexa equação jurídica a ser destrinchada. A cautela e o bom senso pediam um pouco de tempo, mas a Justiça Estadual de São Paulo preferiu demonstrar “autoridade”. Seus dirigentes transformaram um despacho de reintegração de posse em bandeira de luta política. Desafiaram os prazos e as regras processuais para impor a sua interpretação dos fatos – ou a sua vontade, ainda não bem explicada. Venceram. A sua vitória, compartilhada com a nata do conservadorismo e os caciques das finanças, produziu um vasto território arrasado e um punhado de seres humanos literalmente jogados no olho da rua, sem esperança e sem rumo. Serviço exemplar, eficiência admirável.

Volto a pensar, depois de tudo, na medida da violência. Oficialmente, a batalha do Pinheirinho não teve mortes. Daí o sentimento coletivo de normalidade e segurança. Um sentimento falso, que coloca balas de borracha, cassetetes, armas de fogo e gás lacrimogêneo na categoria de brinquedos inofensivos operados por soldados gentis. Se faltam cadáveres, atenua-se a ação violenta. Máquinas destruidoras lançadas na direção de barracos, agressões físicas e psicológicas a uma multidão indefesa, submetida a humilhações diárias, à eliminação das suas referências de vida, dos seus bens, dos seus sonhos, tudo perde importância diante da ausência da morte visível. Eis o decreto contemporâneo: sem a morte, restauram-se a honra militar, a autoridade judiciária, a ordem e a disciplina. Ou, para os que preferirem traduzir, o horror fascista, a insensibilidade social, a hipocrisia e a monstruosidade.

Sem a morte, vale o jato de pimenta nos olhos apavorados de uma criança, vale espancar brutalmente moços e velhos, valem o desabrigo, a falta de sono, a falta de comida, a falta de higiene. Sem a morte, está tudo bem, ainda que o tal artigo 5º da tal Constituição cidadã assegure, num dos seus incisos românticos, que “ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante”.

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