de Fernando Muniz
“Não atenda, Miguel, não atenda!”. Paco fica imóvel no sofá, mirando o vão da porta, tentando decifrar se é o pai ou o filho que veio cobrar o aluguel. “Cacete, para de ser viado, meu. Se for o filho eu quebro a cara dele”. Paco solta um suspiro. “Aham, boa. Aí nos jogam pela janela, logo de uma vez”.
“Olá, bom dia. Vim conversar com vocês, sabe como é, sobre o aluguel”. O velho se assusta com o estado da quitinete. No chão, dois colchões velhos e roupa de cama que parece nunca ter sido trocada. No canto uma tevê antiga e, na cozinha, além da geladeira, uma mesa e três cadeiras. Mais a louça, empilhada na pia. E sujeira. Muita sujeira.
Miguel percebe o mal estar e trata de dar um jeito, começando por juntar os restos de pizza e sanduíche pelo chão. Lembra-se das brigas que tinha com a mãe, por conta do quarto mal-arrumado. Sente um desconforto; faz meses que não vê os pais. Mas espanta esses pensamentos e volta a catar a sujeira. Paco se levanta do sofá, puxa uma cadeira e estende a mão. “E aí, seu Acir, como vão as coisa? Senta, senta aí, vou pegar uma cervejinha pra nóis”. Cheio de cerimônias, faz questão de tirar o paletó do velho e o pendura no dorso da cadeira.
“Meu filho não me deixa beber, sabe como é, faz mal para os remédios da memória”. Miguel interrompe a limpeza e enxuga o suor da testa. “Seu filho não sabe de nada. Nada de nada. Uns gole não faz mal a ninguém. Paco, joga uma aí”. Olha para o alto e agradece às meninas de ontem, por não terem bebido todas.
O velho gosta de falar de futebol e de política, preocupações sem o menor sentido para eles. Mesmo assim, de tanto ouvir as histórias do velho, conseguem notar os furos. “Mas peraí seu Acir, foi a mulher que ensaca vento que derrubaram faz poucos dias, não o cara que caça marajás, correto?”. O velho coça a cabeça, feito criança pega fazendo arte e solta um sorriso sem graça. “É que tudo acontece muito rápido, sabe como é, não consigo mais seguir o noticiário”.
A essa altura, com o seu Acir perdido no passado e tendo bebido duas latinhas, Miguel mexe nos bolsos do paletó e encontra o maço de notas dos outros aluguéis cobrados naquela manhã. Socialização da propriedade privada, como diria a sua irmã mais nova.
É sempre assim; o seu Acir aparece, toma umas, troca os nomes dos políticos e, dali a pouco, Miguel ou Paco surgem com o dinheiro. Até o mês que vem. Basta dar um pouco de corda a ele e seus problemas, esses que todo mundo diz serem importantes, que o assunto do aluguel se resolve.
Mas importantes para quem? Paco se lembra de um filme que viu na escola, sobre o abate de suínos. Aqueles porquinhos todos, pacíficos e higiênicos, entrando em fila na porta do matadouro, esperando a sua vez. E olha para o velho. O negócio é viver a vida e, dali a pouco, acabou. Mais nada. E quanto mais cedo terminar, antes de formarem a fila, antes de o dono do açougue ganhar com a carcaça deles, melhor.
Paco percebe o movimento de Miguel e sussurra para ele pegar um pouco mais do que o do aluguel. “Hoje tem show na pedreira e estamos duros”.
E caretas.
*Inspirado em passagem do livro “Trainspotting”, de Irvine Welsh.