por Vladimir Safatle
“Noturno do Chile” é um romance de Roberto Bolaño. Nele, o autor transforma o general Augusto Pinochet em protagonista da história da vida de um crítico literário conservador.
Em dado momento, o general pede para falar com o crítico que, surpreso, vai ao seu encontro. Lá, entre caminhadas e silêncio, Pinochet começa a falar sobre o que realmente o aflige. Não, o que o preocupa não são lutas políticas, resistência armada ou grandes pactos econômicos internacionais. Sua maior preocupação é intelectual.
Ele não consegue entender por que não é reconhecido em seus dotes literários e intelectuais. Autor de uma grande história militar, Pinochet credita a um complô de esquerdistas o fato de não ser visto como aquilo que ele julga ser.
Só mesmo um escritor poderia compreender esse nó de ressentimento cultural que impulsiona a vida política latino-americana e suas vagas autoritário-conservadoras.
Se Pinochet não foi reconhecido em sua grandeza intelectual é certamente porque todo o aparelho de criação de hegemonia cultural (universidades, editoras, cinemas, artistas em geral) estaria tomado por “ideólogos” que nada sabem sobre a verdadeira arte e o verdadeiro saber. Não há outra explicação possível.
O pensamento conservador cunhou seu mantra preferido, o “marxismo cultural”, este buraco negro no qual tudo pode entrar —frankfurtianos, Heidegger, Gramsci, pós-estruturalistas, presidentes de centros acadêmicos, cantores de MPB, lésbicas e veganos. Antes disso, os nazistas já acusavam artistas e intelectuais que produziam artes e ideais “degenerados” de “bolchevismo cultural”.
O argumento de base era mais ou menos o mesmo. A classe intelectual cosmopolita e libertina teria perdido o contato com os verdadeiros anseios e costumes do povo. Ela perverteu seus valores procurando fazer passar criações “patológicas” e “sexualidades distorcidas” como expressão de genialidade.
No fundo, essa classe seria a verdadeira elite a ser combatida —enquanto a elite econômica e seus interesses de espoliação eram louvados como revolucionários. Como se o lema fosse: enforque um artista e preserve um banqueiro.
Contra o bolchevismo cultural, os nazistas tinham seus “valores naturais”, seus “verdadeiros artistas” que representavam a saúde de seu povo. O mesmo valia para os stalinistas, tanto que os grandes artistas associados ao primeiro momento da Revolução Russa seriam soterrados todos pelos ditames do realismo socialista.
No entanto, talvez seja o caso de perguntar se por trás de toda essa conversa sobre “marxismo cultural” não haveria também uma forte dose de vitimismo. Todos os seus arautos se colocam como vítimas da ignorância oficial e do corporativismo acadêmico.
“Grandes filósofos” irrelevantes em todas as universidades cujas ideias são indissociáveis de intrincados complôs paranoicos e de xingamentos compulsivos. “Grandes artistas” cujas carreiras não decolaram porque não souberam se beneficiar dos pretensos grupelhos que vivem da Lei Rouanet.
O anti-intelectualismo que perpassa um setor da sociedade brasileira encontrou, enfim, seu ritmo de cruzada cívica pela revitalização nacional.
É claro que esses arautos da cruzada contra o “marxismo cultural” gostam de se ver como os verdadeiros revolucionários. Eles querem dar a impressão de estarem a combater os cânones mortificados e hierárquicos em prol da vitalidade dos verdadeiros anseios populares.
No entanto, simplesmente procuram reinstaurar o mais antigo de todos os cânones, baseado em uma mistura de naturalismo simplório, individualismo remixado e fartas doses de dogmática religiosa. Ou seja, trata-se de recuperar um cânone que aparece atualmente como reativo, assombrado pelo fantasma da decadência de um país pretensamente sem ordem.
Mas se há algo que a história nacional nos ensina é que toda contrarrevolução gosta de se vestir com os trajes de uma revolução verdadeira.
Alguns acreditam que essas discussões sobre a vida intelectual são apenas superestrutura, que servem para esconder as verdadeiras dinâmicas de embate. No entanto, seria melhor eles aprenderem a lição de Roberto Bolaño e se perguntarem sobre o vitimismo dos novos candidatos a Pinochet e a Rasputin de Pinochet.
*Publicado na Folha de S.Paulo