9:30O Brasil que conheci no WhatsApp

por Pedro Doria 

Desde a greve dos caminhoneiros, frequentou meu WhatsApp um número grande de grupos políticos de esquerda e de direita. Principalmente de direita. A maioria não durava mais do que uma semana. Pulava fora por falta de novidade. A quantidade de memes, vídeos e áudios produzidos durante a campanha eleitoral foi intensa, mas, depois de um certo número de grupos, é possível perceber que o material se repetia. Há um, porém, um no qual entrei em finais de maio, do qual nunca saí. Não sei explicar bem por quê. Esta semana, me detive nele por mais tempo, vendo o que por ali se publicou por vários dias.

Hoje se chama Notícias 24 hs. Mas já teve outros nomes — seu gestor gosta de mudar. Não é grande, pouco menos de duzentas pessoas, com DDDs de todo o país. Nele, não se conversa. Há links para notícias genéricas, sempre do mesmo site pequeno que as busca em veículos grandes, copia, cola, publica. Principalmente, neste grupo se distribuem vídeos.

Durante a campanha, foram inúmeros vídeos favoráveis ao presidente eleito, Jair Bolsonaro. O ritmo diminuiu, mas eles continuam. Há também muitos, semiprofissionais, com mensagens inspiradoras. Num, desta semana, musiquinha doce ao fundo, o locutor lembra seu tempo de menino, cantando de manhã o Hino na escola, quando aprontava levava do pai um corretivo, nota boa não era mais que obrigação, tratava os mais velhos com respeito — um resumo de como se perderam os bons valores, de como ele foi bem criado. Os filmetes religiosos, citações bíblicas, metáforas ligadas ao Velho Testamento e pastores falando, pastores falando o tempo todo, são igualmente comuns.

Assim como o são flagrantes, em todo o Brasil, de linchamentos e fuzilamentos de criminosos.

Não foi na internet que assisti pela primeira vez, capturadas em vídeo, a cenas de violência extrema, de barbárie. O jornalismo, às vezes, nos coloca perante a dureza da vida em sua pior forma. Mas o impressionante neste grupo é como são frequentes. E como são celebradas.

Nem todos os grupos de WhatsApp da direita são assim. Há os mais políticos. Os mais bem-humorados, cheios de piadas. Uns têm enfoque militar forte. Neste, porém, convive toda uma visão de mundo.

Os valores são conservadores, com a família no centro da vida e uma hierarquia muito clara e definida, pai e mãe, filhos obedientes, a pátria como inspiração. Uma família saída dos livros de Educação Moral e Cívica com os quais estudávamos entre os anos 1970 e 80. A diferença é que, naqueles livros, a família ao domingo ia à missa católica. Na versão século 21, saiu o padre, entrou o pastor. E este pacote, no qual todos parecem boas pessoas, respeitosas, do tipo que pedem a benção para a avó, é complementado com o ambiente selvagem da Lei de Talião.

Porque as cenas de linchamento, as fotos de corpos abatidos a bala e cheios de sangue, são, no geral, acompanhados de comentários eufóricos. Recebeu o que merecia. A polícia fez seu trabalho — quando é o caso de operação policial. Esse aí nunca mais vai abusar de nenhuma moça.

Em uma série de trabalhos, o sociólogo José de Souza Martins escreveu sobre como são comuns os linchamentos no Brasil. O nosso é um país que lincha muito e, não raro, lincha errando a identidade da vítima. Se parece que há incoerência no mix de religião com violência, bem, esta é a realidade da vida para inúmeros brasileiros nas periferias e favelas. A igreja evangélica e as mortes por tiro estão ambas no quarteirão da casa.

Muito ainda vai se escrever sobre WhatsApp e política. Pois foi neste grupo que aprendi sobre o Brasil desta eleição.

*Publicado no jornal O Globo

2 ideias sobre “O Brasil que conheci no WhatsApp

  1. SERGIO SILVESTRE

    Pois é,que saudades de canivetear um cavaco para fazer um palito de dentes e seguir para o eito mascando capim margoso…que saudades.

  2. Frik

    A disciplina de Educação Moral e Cívica, que eu me recorde, não se referia a alguma religião específica, às “missas católicas aos domingos”. Era uma matéria chata, mas respeitava ao princípio da laicidade do Estado… Mas não tenho mais livros e/ou cadernos para confirmar.

    Também não entendi esta conexão entre “igreja evangélica e morte por tiro” … Aquele médico, dr. Kikawa, que foi fuzilado por uma dupla de facínoras (sendo um deles ao que parece “de menor”), no centro de São Paulo, ao sair do seu carro sem reagir ao assalto, foi velado em uma igreja evangélica. O cristianismo, em seus fundamentos, prega a não-violência, a entrega material, oferecer a outra face em caso de agressão…

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