Por Ivan Schmidt
Presidente do Conselho de Sociologia e Política da Fecomércio e coordenador nacional do Centro de Integração Empresa-Escola (Ciee), o ex-deputado federal do PT de Minas Gerais, Paulo Delgado, um dos mais lúcidos e combativos integrantes da respectiva bancada quando lá esteve, em entrevista de página inteira ao jornal Valor Econômico no último dia 5, disse que o Brasil está embalsamado e que o Congresso obedece, em comportamento bovino, ao estatuto da gafieira imortalizado em samba de sucesso: “Quem está dentro não sai, quem está fora não entra”.
A entrevista concedida aos jornalistas Rosângela Bittar e Raymundo Costa passou por vários assuntos específicos, como a recente greve dos caminhoneiros, embora tivesse a maior parte do espaço dedicada à política, atividade que o sociólogo conhece por dentro.
Apontada pelos entrevistadores a situação de desgoverno vivida pelo país, Delgado não teve dúvidas ao advertir a existência de exagerada hipocrisia no ar, sublinhando que são muitos os responsáveis: “Nenhum governante deveria supor que a soberania simbólica da sua autoridade pressupõe a legalidade de qualquer de seus atos. No Brasil, essa pretensão produziu a maioria das suas crises. Como pode um servidor público lucrar com aplicação de uma multa ou receber honorário de causa ganha pelo Estado? Auxílio-moradia para quem tem casa própria? É o fim do mundo. Do lado dos políticos é triste não compreenderem que são cedidos pela sociedade ao Estado. Ou seja, o bom político não está lotado no Estado, como um tijolo na parede”.
Delgado arrisca a fazer um prognóstico que rema em sentido contrário ao que muitos analistas da política imaginam, sustentando que na eleição de outubro haverá “a maior não renovação do Congresso desde os anos 80”. É bom anotar esse comentário do ex-deputado mineiro para conferir no período pós-eleitoral.
Sem a menor dúvida, uma notícia inquietante para os que alimentam a crença em que a próxima eleição teria todas as condições para fixar um sólido marco do recomeço histórico e comportamental, tão necessário no campo da política.
O ex-deputado, porém, comentou que a situação vigente, apesar de sua intensidade e maus resultados também admite uma formulação otimista que pode acender alguma luz para os eleitores: “O país não é uma cômoda em que um candidato acha que pode ir enfiando e tirando de suas gavetas o que quiser. Quando a crise é abertamente política, como é a atual, aumenta a força do tagarela e do superficial. Logo, logo, se quiser ter chance, terá que desacelerar e escrever uma carta aos brasileiros, dizendo que entendeu. O Brasil não é de esquerda nem de direita. Somos socialdemocratas mambembes e autoritários, o que confunde os conceitos e os candidatos ligeiros”.
“A Constituição virou uma peteca nas mãos do Supremo, que tirou o caráter normativo do Direito e fez da interpretação da lei objeto de fruição pessoal”, enfatizou ao afiançar que os que assim procedem “são maus costureiros, encheram o país de alfinetes. São as botas togadas do Estado, parecem gostar mais de triunfar do que julgar. Extravagância e exibicionismo moral não ficam bem na Justiça”.
Diante dessa expressão objetiva, foi imediata a pergunta sobre a necessidade de rever a Constituição. Delgado respondeu de forma afirmativa sinalizando não ver “nenhuma centelha de sabedoria disponível”, ao opinar que “se for para fazer outra (Constituição) tem que ser exclusiva, com deputados constituintes avulsos presentes. É justo que nem todos queiram ser representados por partidos”.
O modelo político que insiste em denominar de “Nova República” (1985-2018), na análise do sociólogo é descrito como uma estranha combinação de estabilidade institucional precária e crises político-econômicas periódicas, que chegou ao máximo de sua falta de virtude e caiu como folha seca.
A República que começaria com Tancredo Neves na presidência, mas foi obrigada a amargar cinco anos sob José Sarney, foi encapsulada como um modelo que “produziu sete eleições presidenciais diretas com duas destituições de eleitos”. A partir dessa constatação, Delgado argumenta que entender essa ruína “pode nos fazer encontrar uma saída melhor para o país”, embora a ressalva realista de que o Congresso está em frangalhos, o Executivo loteado e o Judiciário querendo ganhar com a confusão.
Sobre a greve dos caminhoneiros salientou que a mesma foi decretada por organizações sindicais, mas pilotada de forma descentralizada por líderes avulsos com base nas redes sociais: “Através do WhatsApp foram criados os grupos de ação, definidos os pontos de bloqueio, indicados os líderes da operação. Os caminhões são naves espaciais interconectadas, o caminhoneiro é um narrador natural que anda longe e tem mais o que contar do que os meios de comunicação. Em toda estrada tem líder, pelos mais diferentes motivos e lealdades locais, comunitárias. Quem confere sua liderança é a estrada. A política de frete e pedágios extorsivos aumentou a bronca”.
E a postura do candidato a presidente que faz campanha de dentro da cadeia?
A pergunta assaz provocativa e pertinente mereceu resposta certeira: “Mais um capítulo triste do desregramento geral. Todos estão fingindo que não estão vendo que o objetivo é deformar o entendimento do caso e desmoralizar a Justiça. Os visitadores usam as entrevistas para mandar recado eleitoral. A velha fixação publicitária de explicar como glória a contraglória. Só que, ao impedir que a realidade venha à tona, mais ampliam seu autoengano e tornam inútil seu partido. Este talvez seja o centro do diagnóstico de nosso tempo, não seremos uma sociedade livre se cada um puder criar o seu próprio contexto. Será que ninguém se dá conta de que se um líder político não aceita a coerção legal agir sobre ele, num país em que o crime é dirigido das penitenciárias, nada melhor para o mundo do Marcola de que um ex-presidente esculhambar o sistema penal aumentando a tolerância ao delito”?
Como costumava dizer um velho professor de história a declaração “é mais clara do que a água do córrego depois da tempestade”.