por Reinaldo José Lopes, na revista piauí
Pesquisa inédita revela que as matas de araucária do sul do Brasil foram plantadas por tribos Jês há mil anos; espécie está ameaçada de extinção
Quando os europeus começaram a chegar às áreas montanhosas da região Sul do Brasil, encontraram majestosas florestas nas quais predominava a araucária ou pinheiro-do-paraná (Araucaria angustifolia), espécie dizimada nos séculos seguintes por causa da excelência de sua madeira, e ainda hoje sob risco de extinção. Uma nova análise arqueológica fortalece a ideia de que a vastidão das matas de araucária do sul pré-cabralino também foi, em grande parte, causada pela ação humana: a floresta se expandiu justamente numa época em que o clima era desfavorável ao seu crescimento e tem associação estreita com os assentamentos das principais sociedades indígenas dos planaltos sulinos.
A descoberta faz parte de um grande esforço de arqueólogos do Brasil e do Reino Unido para mudar a compreensão sobre o passado indígena dessas regiões. Tais áreas elevadas eram o domínio de grupos conhecidos coletivamente como Proto-Jê, cujos descendentes atuais são as etnias Kaingang e Xokleng. Em tempos recentes, eles eram vistos como grupos relativamente pouco organizados e sem grande produção agrícola. Mas os dados arqueológicos levantados nos últimos anos sugerem a existência de sociedades populosas, produtivas, dedicadas à construção de monumentos funerários com terra batida e em processo de consolidação política, com a formação das chamadas chefias de escala regional, nas quais várias aldeias ficavam sob a hegemonia de um único líder.
“Não há dúvida de que eles tinham absoluta consciência do que estavam fazendo [ao estimular a expansão das araucárias]”, disse o arqueólogo brasileiro Jonas Gregorio de Souza, da Universidade de Exeter (oeste da Inglaterra), um dos autores do novo estudo na revista especializada Scientific Reports. Souza citou o conceito de “landesque capital”, usado para definir a criação, pela mão humana, de ambientes de larga escala que favorecem a subsistência de uma sociedade no longo prazo. “Você modifica a paisagem não só para o seu benefício, mas também para o de várias gerações seguintes. No caso da araucária, uma árvore que demora uns quarenta anos para chegar à maturidade, isso é muito claro, porque você não vai ter um aproveitamento imediato daquilo.”
O primeiro passo da equipe, que inclui também pesquisadores da USP e da Universidade Federal de Pelotas, foi examinar a distribuição geográfica moderna das matas de araucária e compará-la com os dados paleoclimáticos e paleoecológicos, ou seja, como teriam variado o clima e os ambientes sulinos ao longo dos últimos milênios.
Eles verificaram, em primeiro lugar, que esse tipo de floresta, que abriga ainda espécies como a Ilex paraguariensis, a célebre erva-mate, passou por uma fase inicial de expansão entre 4 500 e 3 000 anos atrás, época em que ainda havia poucos sinais de atividade agrícola e sedentarismo na região. Nessa fase, o crescimento das araucárias se concentrou principalmente à beira de rios do planalto. Depois disso, há um longo período de estagnação desse avanço, que retorna, de modo rápido e amplo, entre 1 500 e 1 000 anos atrás, coincidindo com uma fase de expansão e aumento da complexidade e tamanho dos assentamentos Proto-Jê.
Mas, como sabe qualquer um que conheça os rudimentos da metodologia científica, correlação não significa causa – mesmo que o crescimento dos Proto-Jê e o das matas de araucária coincidam, isso não significa, necessariamente, que o primeiro teria causado o segundo (ou vice-versa). Um primeiro elemento que ajuda a quebrar esse impasse vem dos dados paleoclimáticos. Araucárias se dão melhor em ambientes mais úmidos e, de fato, a região Sul passou por um aumento da umidade na primeira fase de expansão das matas, por volta de 4 000 anos atrás – mas não na segunda fase. Aliás, enquanto assentamentos indígenas e florestas cresciam cerca de 1 000 anos atrás, a região estava ficando mais seca. Ou seja, se dependessem apenas de causas naturais, as araucárias deveriam ter se retraído, sendo substituídas por gramíneas.
O passo seguinte foi tentar comparar o que acontecia com a mata em regiões com alta concentração de sítios arqueológicos e outras em que não existiam assentamentos pré-cabralinos. A ideia era produzir um modelo do habitat “100% natural” das araucárias e ver se ele batia com a distribuição das árvores em todos os lugares. Para isso, os pesquisadores compararam Campo Belo do Sul, em Santa Catarina, habitado pelos Proto-Jê, com Lages, 60 quilômetros a leste, sem a presença de aldeias pré-históricas. Para minimizar a possível influência das derrubadas mais recentes na interpretação dos dados, a equipe teve ainda o cuidado de usar imagens de satélite dos anos 60 na análise.
Resultado: os dois cenários simplesmente não batem. A distribuição da floresta em Lages, teoricamente mais “natural”, concentra-se em áreas um pouco mais baixas e encostas voltadas para o sul, enquanto as araucárias de Campo Belo do Sul são comuns também em áreas mais altas e encostas voltadas para o norte. “Essa preferência pelo sul das araucárias é bem conhecida na literatura botânica”, conta Souza. “Parece ter a ver com a direção predominante dos ventos e com a iluminação que as plantas recebem, o que favorece seu crescimento.” Então, como elas chegaram às encostas ao norte?
A última peça do quebra-cabeça veio da análise e da datação dos solos onde as árvores crescem. Ocorre que diferentes tipos de vegetais incorporam proporções ligeiramente distintas de isótopos (variantes) do elemento químico carbono em seu organismo conforme fazem fotossíntese e crescem. Desse ponto de vista, árvores como as araucárias são classificadas como plantas C3 e usam menos o isótopo chamado de carbono-13 em seu metabolismo do que as gramíneas tropicais, chamadas de plantas C4. Conforme as plantas vão morrendo, essas diferentes proporções de carbono-13 vão sendo incorporadas ao solo, deixando um registro das mudanças de vegetação em cada lugar. De quebra, é possível datar essa variação ao longo do tempo.
O que os pesquisadores viram é que, enquanto locais desabitados como Lages possuem um perfil estável de isótopos de carbono ao longo de milênios, áreas com sítios arqueológicos que antes tinham gramíneas passam por uma mudança nas variantes do elemento químico em seu solo que só podem significar a chegada de araucárias em massa à paisagem – e isso justamente no período que coincide com a ocupação indígena. Os ancestrais dos Kaingang e Xokleng, portanto, de alguma forma estavam atuando como semeadores da floresta, levando-a para locais onde não cresceria naturalmente e usufruindo dos muitos recursos que ela oferece, como os saborosos e nutritivos pinhões.
É importante frisar a expressão “de alguma forma” porque não há indícios claros de plantio em grande escala de araucárias nos dados etnográficos sobre essas populações. O processo pode ter sido mais passivo, pondera Souza: coletando grandes quantidades de pinhão e carregando-as consigo quando fundavam novos assentamentos, os indígenas fatalmente deixariam de consumir algumas das sementes, que acabariam germinando. Processos desse tipo continuam acontecendo ainda hoje em comunidades tradicionais da região.
Seja como for, a simbiose com as araucárias, bem como lavouras de mandioca, feijão e abóbora, levou à construção de grandes aldeias com centenas de casas semissubterrâneas e monumentos funerários como montículos de terra no alto dos morros ou grandes anéis de terra batida, com dezenas de metros de diâmetro e até 1 metro de altura. Nesses montes podiam ser depositados os ossos de defuntos da “nobreza” Proto-Jê depois de cerimônias de cremação.
A grandiosidade desses monumentos, aliás, fica mais marcada com o aparecimento dos grupos Guarani na região, vindos do oeste e do norte, talvez como sinalização simbólica dos chefes dos grupos Proto-Jê contra a ameaça representada pelos forasteiros. Desse ponto de vista, as matas de araucária e as aldeias ligadas a elas podem ser consideradas fortalezas desse povo nos planaltos sulinos.
Reinaldo José Lopes (siga @reinaldojlopes no Twitter)
Reinaldo José Lopes é jornalista de ciência, colunista da Folha de S.Paulo e autor do livro 1499: O Brasil Antes de Cabral (2017)
Excelente matéria. Geralmente não sabemos pq as coisas acontecem e saio que são no Brazuca.
Interessante notar que não se faz referência a uma sequer entidade paranaense no trabalho.
Pelo jeito, não é à toa que o Paraná, apesar de estar reduzindo o desmatamento da Mata Atlântica, ainda é o terceiro maior desmatador entre os 17 estados com Mata Atlântica.