7:17Coxinha, mortadela e brócolis

por Ricardo Araújo Pereira

Você vê “O Mecanismo”? Fascista. Não vê? Ladrão. Viu “Lula, o Filho do Brasil”? Ladrão. Não viu? Fascista. O mundo está muito simples, e por isso fica bem mais fácil de entender. Resta saber se assim a gente entende alguma coisa.

À primeira vista, acho que esta tipologia peca logo por esquecer um grupo bastante numeroso: o dos fascistas ladrões.

O politólogo italiano Norberto Bobbio escreveu um livro célebre acerca dos conceitos de esquerda e direita intitulado “Esquerda e Direita”. Enfim, Bobbio não tinha muita imaginação para títulos. Mas distinguiu os dois quadrantes ideológicos de uma maneira bastante acessível e clara.

O fundamental, em traços gerais, é isto: a esquerda acredita que as pessoas são mais iguais do que desiguais, e por isso defende que a sociedade deve tender para reproduzir essa igualdade; a direita acredita que as pessoas são mais desiguais do que iguais, e por isso considera natural, e até justo, que a sociedade reproduza essa desigualdade –pelo menos, até certo ponto.

Eu sou de esquerda porque creio que todo o mundo é, no essencial, exatamente igual a mim. Ou seja, tenho a humanidade em muito má conta.

Significa isso que sou um mortadela, por oposição aos coxinhas? Não me parece. Na verdade, politicamente sempre me senti um brócolis. Sou aquilo que as pessoas colocam na beira do prato, enquanto se concentram na coxinha e na mortadela.

Eu, modéstia à parte, sou melhor para a saúde da democracia. Mas acabo por não fazer parte da refeição. Sou difícil de engolir (já devem ter reparado que a metáfora da comida está a tornar-se cada vez mais difícil de sustentar), porque acho que é possível uma feminista dizer coisas erradas e um empresário dizer coisas certas. É raro, mas é possível.

O problema da definição do Bobbio é que não faz qualquer julgamento moral. Não indica o quadrante ideológico que tem vocação para o furto nem o que preza autoritarismo sanguinário.

Ele parece achar que a discussão política pode decorrer em voz baixa, sem que os intervenientes no debate se reduzam a caricaturas primárias de si mesmos. Muito estranho. Esse italiano não sabe do que fala, como é óbvio. Bobbio, claramente, tem um i a mais.

*Humorista português e um dos criadores do “Gato Fedorento”

*Publicado na FSP

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