por João Pereira Coutinho
Jantar social. Os pais falam dos filhos. Da escola, claro. E de todas as atividades fora da escola, onde a descendência passeia seus talentos. Tênis, futebol, natação. Um deles, hipismo. E uma pessoa pergunta se eles falam de crianças ou de atletas de alta competição.
A pergunta é redundante: os filhos “competem” e eles seguem os “competidores”, de norte a sul do país, como “groupies” de banda rock.
Em rigor, eles não falam dos filhos. Falam deles próprios —das suas vaidades e, ponto importante, das suas frustrações. Onde está o mal?
Um filme a que só agora assisti ajuda na resposta. Falo de “Borg vs. McEnroe”, obra competente de Janus Metz sobre o famoso duelo em Wimbledon, corria 1980, que opôs Björn Borg e John McEnroe. Borg tinha vencido quatro vezes e tentava o feito de vencer uma quinta. McEnroe buscava sua primeira vitória.
Na “New Yorker”, o crítico Richard Brody tem razão quando afirma que o filme, só agora estreado nos Estados Unidos, desconstrói as ideias feitas que temos sobre os ídolos.
Borg, o atleta glacial com uma precisão de drone militar, afinal tinha uma vida de obsessão-compulsão devotada a rituais vários, insanos, esgotantes. McEnroe, a “prima donna” rebelde que passava metade do jogo a quebrar raquetes e a paciência do juiz, era um gênio matemático, bastante mais cerebral do que a figura pública deixava imaginar.
Mas aquilo que mais me interessou no filme foi ver como o talento de ambos respondia à ambição dos progenitores. No caso de McEnroe, a ambição do pai, que gostava de exibir as aptidões matemáticas da criança perante os amigos, como se ele fosse um animal de circo.
No caso de Borg, a ambição do pai “substituto” —o técnico Lennart Bergelin, que chegou três vezes às quartas de final de Wimbledon e que espera do discípulo a compensação pelas suas próprias derrotas passadas. Ao meio da narrativa, já não sabemos se a ambição de Borg é genuína ou apenas um simulacro da ambição de Lennart.
O que sabemos, e sentimos, é que Borg é uma tristeza em forma humana, incapaz de retirar do tênis o mesmo prazer e liberdade que experimentava no seu bairro sueco, quando batia bolas contra a porta da garagem.
Especialistas no assunto dirão que esse “spleen” é inevitável quando se atinge o cume de um desporto e a pressão aumenta na mesma medida. Será que a minha instintiva hostilidade ao desporto me impede de compreender isso?
Talvez. A esse respeito, lembro-me bem das aulas de ginástica, quando as minhas perguntas filosóficas ensandeciam o professor. Ele, como um sargento de filme, gritava para o regimento: “Vamos ver quem chega primeiro!” Os meus colegas iniciavam a corrida como galgos atrás da lebre. Eu, parado na linha da partida, olhava o sargento e questionava: “Mas o que ganho eu com isso?”
O sargento, próximo da apoplexia, falava em “respeito por nós próprios” ou qualquer outro clichê. Eu tentava dizer que tinha bastante respeito por mim próprio, sobretudo quando parado. O homem, para não desmaiar, ordenava: “Duche!” Era a única vez em que eu corria como um atleta.
Acontece que a minha desconfiança perante a “alta competição” não é questão pessoal. É, uma vez mais, filosófica. E não se aplica apenas ao desporto; também serve para qualquer atividade humana.
Para usar a linguagem aristotélica popularizada pelo filósofo Kieran Setiya, existem dois tipos de atividades: as “télicas” e as “atélicas”. As primeiras procuram um fim determinado e são avaliadas pela concretização desse fim. As segundas valem por si, não pelo sucesso ou insucesso do resultado.
Óbvio: muitas das coisas que fazemos são télicas por definição. Eu, por exemplo, tenho de concluir um livro e entregá-lo no prazo combinado. Mas a minha vida seria insuportável se o ato de escrever estivesse apenas dependente das boas críticas ou dos bons prêmios.
O prêmio que importa está no processo da composição, não nos estímulos externos que são sempre dúbios e conjunturais. Mais cedo ou mais tarde, tudo termina em fracasso. Exceto se a ideia de fracasso (e de triunfo) deixar de depender dos aplausos das bancadas.
No filme, e antes do jogo final, Borg e McEnroe estão sentados lado a lado, em silêncio, infelizes que Deus me livre. Por cima deles, uma inscrição de dois versos de Rudyard Kipling na parede: “Se conseguires enfrentar o Triunfo e o Desastre/ E tratares desses dois impostores da mesma forma”.
É o meu “match point”.
*Publicado na Folha de S.Paulo