por Ruy Castro
O homem mais cioso de sua intimidade que o Brasil conheceu — João Gilberto — pode ter essa intimidade exposta se se concretizar o que a Justiça já autorizou: o arrombamento de sua porta e sua condução a exames médicos que, tudo indica, lhe exigirão extenso tratamento. Imagina-se que essa medida não será executada na presença de estranhos. Mas será difícil que o resultado não vaze para o público.
Há 20 anos ouço de pessoas muito próximas de João Gilberto que o governo “deveria fazer por ele o que ele fez pelo Brasil”. O que João Gilberto fez pelo Brasil é sabido — colocou o país no mapa da música mundial —, mas, ao perguntar o que o governo deveria fazer por ele, nunca recebi respostas claras. Uma mesada? Dinheiro para zerar as dívidas? Casa, comida e roupa lavada pelo resto de seus dias? Uma estátua, um busto, um selo dos Correios?
Em boa parte desses 20 anos, todos os estúdios de gravação e salas de concerto, daqui e de fora, estiveram abertos para João Gilberto. Mas seus últimos shows no Brasil foram em 2008, e o último disco, “João, Voz e Violão”, no remoto 1989. Quantos shows e discos não lhe foram propostos desde então e, por razões várias, não se materializaram?
Sempre me perguntei por que João Gilberto, que já nos dera tanto, não dava um pouco a si mesmo — como, digamos, gravar com pessoas que amava e admirava, como Lucio Alves, Milton Banana e Johnny Alf. Seus fãs se engalfinhariam por esses discos.
Mas o sonho se limitou a mim. Anos depois, Lucio, Milton e Johnny conheceriam extremos ocaso, pobreza e doença, e, no fim, só teriam a seu lado os amigos. Nunca se disse que o governo deveria conceder-lhes benefícios. Nem mesmo por terem sido, cada qual em sua genialidade, decisivos para ajudar João Gilberto a pôr o Brasil no mapa da música mundial.
*Publicado na Folha de S.Paulo