7:21Vale a pena ver ‘O Mecanismo’

por Elio Gaspari

É bom negócio ver “O Mecanismo”, a série de José Padilha na Netflix. Seus oito episódios contam a história da Lava Jato até as vésperas da prisão de Marcelo Odebrecht. Eles giram em torno de dois eixos.

O primeiro é uma novela-padrão onde há sexo, traições, doenças, rivalidades, muitos palavrões e até mesmo uma menina com deficiência. A quem interessar possa: o agente Ruffo nunca existiu. Pena que ele seja um narrador do tipo “faço-sua-cabeça”, numa espécie de reencarnação do Capitão Nascimento de “Tropa de Elite”. A agente Verena é uma exagerada composição.

É a segunda história, a da Operação da Lava Jato, que valoriza a série. E é ela que vem provocando a barulheira contra Padilha. A ex-presidente Dilma Rousseff (Janete Ruscov na tela) acusa “O Mecanismo” de duas fraudes. Jogaram para dentro do consulado petista a operação-abafa que decapitou as investigações das lavagens de dinheiro do caso Banestado, ocorrida durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. (Há uma referência a “dez anos depois”, mas ela ficou embaralhada.) Noutro lance, puseram na boca de Lula (Higino, igualzinho ao original, graças ao ator Arthur Kohl) a frase “é preciso estancar a sangria”, do senador Romero Jucá. Também não há prova de que “Higino” tenha pedido a “Janete” para trocar a direção da “Polícia Federativa”.

A narrativa do caso será útil para muita gente que perdeu o fio da meada da Lava Jato. Essa é a razão pela qual é melhor ver a série do que não vê-la. A Lava Jato fez um memorável serviço de faxina e hoje parece banalizada, o que é uma pena. O câncer de que fala o agente Ruffo estava lá e ainda está. Entrou areia no mecanismo das empreiteiras, mas ele funciona em outras bocas.

Num primeiro momento Padilha explicou-se: “O Mecanismo é uma obra-comentário, na abertura de cada capítulo está escrito que os fatos estão dramatizados. Se a Dilma soubesse ler não estaríamos com esse problema”. Seja lá o que for uma “obra-comentário”, Dilma sabe ler e essa explicação tem o valor de um balanço de empreiteira. Seria como se o diretor Joe Wright, de “O Destino de uma Nação”, atribuísse a trapaça que fez com Lord Halifax a uma licença cinematográfica.

Num comentário posterior, Padilha disse que expôs a corrupção do PT e do MDB. É verdade, pois o vice de Dilma chama-se “Tames” e foi posto no jogo. O tucano Aécio Neves também está no mecanismo: “Se o ‘Lúcio’ vence a eleição, breca isso na hora”. O procurador-geral Rodrigo Janot ficou por um fio. Padilha pegou pesado ao mostrar os pés dos ministros do Supremo entrando numa sessão enquanto Ruffo fala nas “ratazanas velhas” de Brasília. A dança dos presos comemorando uma decisão do STF também foi forte, mas como se viu há pouco, o Supremo decide e réus festejam.

Padilha bateu num caso histórico. A série é dele e fez o que bem entendeu, mas a trama novelesca e as catilinárias de “Ruffo” tiraram-no de outro caminho, o de uma série e de um filme recentes. “The Crown” é factualmente impecável e mexeu com os mecanismos da Casa de Windsor. “A Guerra Secreta” não precisou demonizar Richard Nixon para contar a história da briga do Washington Post pela publicação dos “Papéis do Pentágono”. Nos dois casos não houve novela paralela, pois o recurso não era necessário.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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