por Mario Sergio Conti
Voz veemente dos movimentos de libertação do século passado, Frantz Fanon teve audiência esparsa no Brasil. Mas lá fora ela foi ouvida por Mandela, Che Guevara e pelos Panteras Negras. Vibrou em guerras coloniais e universidades metropolitanas.
A voz ressoa ainda porque o racismo e a rebeldia continuam atuais. Algumas ações militares no Rio, por exemplo, parecem vir de “Os Condenados da Terra”. Seu último livro, foi lançado dias antes de Fanon morrer, em 1961, de leucemia. Tinha 36 anos.
“A descolonização é sempre um fenômeno violento”, afirma “Os Condenados”, censurado logo que saiu. Escrito durante a guerra argelina pela independência, que a metrópole francesa considerava “terrorismo”, o livro convoca à insurreição os negros, os sem-terra, os sem-teto, os amaldiçoados todos do Terceiro Mundo.
A voz era distinta porque tinha brio e teoria. Inspirado no Hegel da dialética do senhor e do escravo, Fanon diz que a colonização é um sistema: “Foi o colonizador que fez e continua a fazer o colonizado. O colonizador obtém sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial”.
Os colonizados existem porque há quem os colonize. Igualmente, os favelados vivem na insegurança porque se quer isso. Os favelizadores impedem que os favelados tenham a escritura de suas casas. Negam-lhes ruas, água pura, esgoto. Proíbem escolas e hospitais onde vivem. Apesar de tantas juras de melhoria, as favelas só fazem crescer, tomam a cidade.
Fanon parece falar da Maré, ou da Baixada do Glicério, quando diz onde moram os dominados: “É um mundo sem intervalos, onde homens e casas se amontoam. É uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de luz. É uma cidade prostrada, uma cidade de joelhos, uma cidade que chafurda. É uma cidade de negros”.
Parece falar do Leblon, ou de Moema, quando conta como vivem os dominadores: “É uma cidade iluminada, asfaltada, onde as latas de lixo regurgitam restos desconhecidos, nunca vistos, sequer sonhados. Os pés dos colonizadores não são vistos nunca, salvo talvez no mar, mas nunca conseguimos nos aproximar. É uma cidade de brancos”.
Era uma voz retinta e francófona. Fanon nasceu na Martinica, departamento francês no Caribe, filho de funcionário negro e comerciante mestiça. Suas primeiras palavras foram “sou francês”. Lutou contra a ocupação nazista, foi ferido e condecorado.
Estudou psiquiatria em Lyon e ali, no cotidiano, tomou consciência do racismo. Sentia que, quando gostavam dele, era apesar da sua cor. Se não gostavam, era por ser negro. “Fico preso num círculo infernal”, afirma no primeiro livro, “Pele Negra, Máscaras Brancas”.
Escrito aos 25 anos, ele é bombástico das primeiras (“A explosão não será hoje. É demasiado cedo… ou tarde demais”) à última frase (“Ó meu corpo, faz de mim um homem que interroga sempre”).
Influenciado por Sartre, Fanon diz que, assim como o judeu é uma criação dos antissemitas, o negro é invenção dos racistas. Uns e outros estão atados numa dialética cuja única superação se dá por meio da luta libertária dos oprimidos –luta que criará a mulher livre, o novo homem.
Fanon usa categorias raciais, mas se filiava ao internacionalismo. Mudou-se para a Argélia, dirigiu um hospital e aderiu à Frente de Libertação Nacional. Intelectual e militante, teve que se exilar em Túnis.
Tudo isso ficou para trás. A globalização dos dominadores anestesiou o internacionalismo dos dominados. Em vez de independência, massas do Terceiro Mundo buscam se integrar às ex-metrópoles, ora hostis. Um milhão de refugiados africanos fugiu para a Europa nos últimos sete anos
A voz de Fanon só é ouvida de quando em quando, na imaginação. Ela ecoou no que Elza Soares disse do suplício de Marielle Franco: “A carne mais barata do mercado é a da mulher negra”.
*Publicado na Folha de S.Paulo