6:29O presente modifica o passado

Por Ivan Schmidt

O leitor brasileiro foi obrigado a esperar exatos 94 anos para ter debaixo dos olhos o livro Nós, do enigmático escritor russo Ievguêni Zamiátin (1844-1937), lançado no ano passado pela Editora Aleph (SP), com a tradução direta do russo assinada por Gabriela Soares, que apesar de evento marcante em nossa indústria editorial sequer desfrutou da prerrogativa de ter o nome grafado nas primeiras páginas do volume, diga-se de passagem, diagramado com algum requinte psicodélico.

De qualquer forma trata-se de um privilégio para o leitor de língua portuguesa (originalmente o livro foi publicado em inglês e logo traduzido para outros idiomas menos o nosso), que cerca de cem anos depois tem acesso a um texto escrito por um dissidente russo que desde a época dos czares tencionava deixar o país alegando que seus escritos, quase sem exceção, eram censurados e proibidos de circular.

Os editores avisam na nota introdutória que a primeira publicação do livro ocorreu nos Estados Unidos, em 1924, com a tradução do russo para o inglês feita a partir de uma cópia transportada clandestinamente para lá, acrescentando que Nós é um romance distópico e, por esse motivo, considerado “ideologicamente indesejável” pelo regime soviético.

Zamiátin imaginou “um governo totalitário chamado Estado Único que, supostamente pelo bem da sociedade, privou a população de direitos fundamentais como o livre arbítrio, a individualidade, a imaginação, a liberdade de expressão e o direito à própria vida”.

O livro polêmico por natureza, segundo a crítica literária, inspirou o aparecimento de alguns notáveis clássicos do gênero como Admirável mundo novo, de Aldous Huxley; 1984, de George Orwell; Fahrenheit 451, de Ray Bradbury e Laranja mecânica, de Anthony Burgess, entre muitas outras narrativas tipificadas como distópicas, também marcadas como “leitura indispensável e fundamental”.

É oportuno lembrar que a edição brasileira foi enriquecida pela transcrição de uma carta pessoal escrita por Zamiátin ao secretário geral do PC, Josef Stalin, em 1931, solicitando permissão para deixar o território russo, o que deve ter acontecido em algum momento posterior ao pedido, já que se sabe que o escritor morreu em Paris em 1937.

Num dos trechos Zamiátin escreveu corajosamente não ter a “intenção de me apresentar como imagem da inocência ferida. Sei que entre as obras que escrevi durante os primeiros três ou quatro anos após a Revolução, havia algumas que poderiam oferecer um pretexto para ataques. Eu sei que tenho o hábito altamente inconveniente de dizer o que eu considero ser a verdade em vez de dizer o que pode ser conveniente no momento”.

E enfatizava ainda que em momento algum de seu ofício de intelectual “disfarcei minha atitude em relação ao servilismo literário, à bajulação e mudança de cor camaleônicas: eu senti, e ainda sinto, que isso é igualmente degradante tanto para o escritor quanto para a Revolução”.

O escritor se sentia manietado pelos grilhões de um sistema discricionário e opressor relatando ao chefe todo-poderoso (como se ele já não soubesse) que “não importa qual seja o conteúdo de uma obra, o mero fato de ter a minha assinatura se tornou razão suficiente para declará-la criminosa”.

Banido do ambiente literário dominado por amanuenses tarjados de censores e cordatos intelectuais subjugados pelo centralismo doutrinário bolchevista, os livros futuros de Zamiátin não mais foram editados e as edições anteriores retiradas das livrarias. Suas peças teatrais amplamente aceitas pelo público tiveram a mesma sorte, levando o autor a declarar que “a caçada humana organizada na época não teve precedentes na literatura soviética e até virou notícia na imprensa estrangeira. Foi feito todo o possível para fechar todos os caminhos para as minhas novas obras. Eu me tornei objeto de temor para meus antigos amigos, editoras e teatros”. Zamiátin comparou esse tratamento desumano a uma autêntica sentença de morte.

Outra informação preciosa para o leitor brasileiro é a resenha literária do romance de Zamiátin, redigida por George Orwell e publicada pela revista inglesa Tribune em 4 de janeiro de 1946, há mais de 70 anos. O autor de1984, que dizem ter-se inspirado em Nós, admite que a distopia não trata da Rússia e não tem relação com a política stalinista apresentando-se como uma fantasia do século 26, portanto algo que deveria acontecer, não fosse uma alegoria, somente daqui a seis séculos!

Orwell revela reiterando que o fazia em primeira mão, que o romance Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, “deve, em parte, originar-se” do romance escrito pelo russo. Ambos os livros, opinou, “tratam da rebelião do espírito humano primitivo contra um mundo indolor, mecanizado e racionalizado, e ambas as histórias supostamente se passam daqui a seiscentos anos. A atmosfera dos dois livros é semelhante e, em linhas gerais, é o mesmo tipo de sociedade que está sendo descrito, embora o livro de Huxley demonstre menos consciência política e seja mais influenciado pelas recentes teorias biológicas e psicológicas”.

O narrador da distopia imaginada por Zamiátin já nos primeiros tempos da chamada ditadura do proletariado é o engenheiro chamado D-503, porque os seres humanos haviam sido privados pelo Estado Único de receberem nomes comuns. A certa altura da narrativa D-503 lembra que “caminhávamos como um corpo de milhões de cabeças, e em cada um de nós havia a mesma alegria resignada que, provavelmente, experimentam as moléculas, os átomos e os fagócitos”, concluindo que “talvez eu já não seja um fagócito que, zeloso, devora tranquilamente os micróbios (com têmporas azuladas e sardas): talvez eu seja um micróbio e, talvez, um dos milhares entre nós que como eu ainda fingem ser fagócitos”.

É escusado lembrar aos leitores atuais que qualquer semelhança com fatos e coisas ocorridos sob as botas de Stalin e seu sorriso malévolo não são meras coincidências.

Há espaço cativo no caos organizado de minha biblioteca para os livros escritos pelo inglês Anthony Burgess, que a semelhança de milhares de brasileiros conheci pela leitura de Laranja mecânica lá pelo início dos anos 80, se a memória não me falta.

Pois Burgess se interessou vivamente pelo romance de Orwell, a ponto de escrever uma resposta ao compatriota – 1985 – a primeira novela cacotópica da qual se tem notícia, na qual o autor “nos lança na Inglaterra do Futuro, onde a classe operária organizada domina a vontade do indivíduo”.

Burgess propõe que a Oceania – território dominado pelo Ingsoc – é governada por uma oligarquia de refinados intelectuais, ou seja, a classe que cultiva a sutil filosofia solipsista; sabe como manipular a linguagem e a memória e, por meio delas, a natureza da realidade apreendida; tem plena consciência das razões que a levam a desejar o poder; aprendeu a refrear a ambição pessoal no interesse do poder coletivo; não admite o culto à personalidade nos moldes hitleristas ou stalinistas.

E enfatiza que o Grande Irmão “é uma invenção, um personagem fictício e, por isso, imortal, e aqueles que se integram nele partilham dessa imortalidade. A oligarquia aprendeu a conciliar os opostos, não através da dialética, que é diacrônica e admite a ausência de controle sobre o tempo, mas pela técnica sincrônica do duplipensar”.

Em seu enquadramento Burgess diz que a “técnica conhecida como duplipensar é um artifício usado para fazer com que a observação e a memória individual estejam sempre em harmonia com qualquer coisa que o partido tenha decidido ser, no momento dado, a realidade. O passado não determina o presente; o presente modifica o passado. Isso não chega a ser assim tão terrível quanto parece: a memória coletiva deve ser armazenada em arquivos e uma das características dos arquivos é o fato de que podem ser facilmente alterados. Indo um pouco mais longe: o passado não existe e, assim, podemos inventá-lo. Sempre que estes passados inventados entrarem em conflito, cabe lançar mão do duplipensar”.

Ele próprio autor de uma distopia – Laranja mecânica – Burgess tomou a liberdade literária de apresentar aos leitores sua versão do duplipensar, descrito como uma “formulação bastante séria de certo tipo de controle mental – mas é também uma brincadeira sem graça”, raciocínio elementar que lhe permitiu descobrir o caminho das pedras: “Orwell estava farto das mentiras dos políticos. Mas ele sabia que só muito raramente essas mentiras têm origem no cinismo ou no desprezo pela massa. O político é um homem totalmente dedicado a seu partido, necessitando sempre encontrar uma forma de fazer com que a pior das causas pareça ser a melhor delas. Não é que deseje mentir – é obrigado a fazê-lo. Para evitar a mentira descarada, sempre pode lançar mão de uma série de recursos; um jargão incompreensível, frases ambíguas ou redefinição de palavras. Para ele só há um pecado imperdoável: ser desmascarado”.

A palavra utopia foi inventada por Tomas More e segundo Burgess “sempre teve uma conotação de facilidade, conforto, a Terra do Lótus, quando, na verdade, designa apenas qualquer sociedade imaginária, seja ela boa ou má”, ao passo que “distopia sempre aparece como um antônimo de utopia, mas na verdade os dois termos se assemelham. Eu prefiro chamar a sociedade imaginária de Orwell de cacotopia, na mesma linha de cacofonia oucacodermon (demônio)”.

É necessário voltar ao tema.

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