8:51Memórias de um antissemita

por Mario Sergio Conti

O fracasso nacional em construir uma república democrática pôs o povo à mercê da elite lúmpen. Dólar a dólar, a burguesia bandida cevou a nata de terno e toga que zela por ela em tribunas e tribunais. Classe e casta montaram um consórcio disfuncional, de ar mafioso. E a arte ficou muda.

A presidente cavou a própria cova e caiu em meio a uma algazarra de manipulações. Um títere dos dominantes foi imposto aos dominados. Enquanto o príncipe dos empreiteiros ia preso, o político mais popular era caçado. Vieram a recessão, o desemprego. A arte continuou em silêncio.

O silêncio prevalece porque foi funda a autodesmoralização dos líderes derrotados. Não houve isso em 1964. Apesar do golpe, músicas, romances e filmes críticos foram feitos nas fuças da ditadura. Até o tempo fechar de vez, no fim de 1968. Agora, os artistas estão quietos.

A resposta da arte ficou mais lenta porque o tempo agora é de desagregação. Ela não se restringe à política. A desindustrialização, a financeirização e a desregulamentação assolaram a economia. E a arte virou, cada vez mais, negócio.

Com ritmos variáveis, a putrefação se dá em toda a América Latina, que não teve lugar estabelecido no neoliberalismo em crise. A singularidade nacional está na aguda desigualdade: cinco indivíduos têm patrimônio igual ao de metade do povo brasileiro. É a barbárie.

Nem por isso inexiste arte que ouse enfrentar o presente. Leia-se “Memórias de um Antissemita”. Ao tratar de um lugar (Bucovina, hoje na Ucrânia) e um tema (a ascensão nazista) remotos, o romance de Gregor von Rezzori diz algo do Brasil de hoje.

O narrador, que também se chama Gregor, conta às gargalhadas episódios doloridos pelos quais passou, dando um curso desconcertante à trama. O esgarçamento de sua psique corresponde à dissolução europeia do entre guerras. Sem sentido, e sem saudade do passado, o presente se esvai.

Gregor é um rebento da aristocracia agrária. Ele vê de cima, e por dentro, a dissolução social. É um antissemita canhestro que se apaixona repetidamente por judias. Indivíduo e sociedade soçobram numa pantomima na qual, como escreve, “progresso é decadência”.

A inteligência de Gregor vale pouco no mundo moribundo. Ele frequenta o maestro Karajan e Karl Kraus (“um mero satirista”), mas não percebe que a queda ocorreu e o desastre está em andamento. O narrador se satisfaz em constatar, melancólico:

“As palavras não se amoldam mais à realidade. Palavras são para deferência, para beleza e veneração, para sentimentos nobres e depurados, para pensamentos precisos e distintos, para mentes sensíveis como sismógrafos, para ouvidos íntimos do silêncio”.

Rezzori nasceu na agonia do Império Austro-Húngaro. Morou em Viena, Bucareste e Berlim; foi cidadão romeno, soviético, apátrida e austríaco. Ator, trabalhou com Louis Malle, Mastroianni e Jeanne Moreau.

Morreu em 1998, aos 79 anos. Era poliglota e escreveu dezenas de roteiros, peças e livros (nenhum lançado no Brasil). Trechos das “Memórias de um Antissemita” foram publicados a partir de 1969 –décadas depois dos fatos que lhe servem de matéria.

Ocorre que o protagonista do romance conta o que lhe acontece sem saber o futuro. Assim, põe em circulação sensibilidades que abundam no Brasil desses dias –marcadas por irracionalismo, repressão ao remorso, cinismo e pulsão de morte.

O atual silêncio da arte brasileira pode vir a gerar, algum dia, romances do quilate de “Memórias”. Mas se terá perdido o essencial, o engajamento no presente. É o que livro afirma:

“O sangue jorra hoje como antes; o sangue sempre jorrou, em torrente; que não seja o seu sangue se deve ao acaso de circunstâncias que nem se pode chamar de fortuitas. A única dignidade que se pode manter no nosso tempo é a dignidade de estar entre as vítimas”.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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