por Fernando de Barros e Silva
“As portas da aeronave foram fechadas com atraso por motivos operacionais, alheios à nossa vontade.”
A voz que chega pelo sistema de som do avião é impessoal e suave, como manda o protocolo. Não há pedido de desculpas, não há – sobretudo isso – responsabilidades. Os motivos do atraso são “operacionais” e “alheios à nossa vontade”. Estamos num mundo em que as coisas acontecem, ou deixam de acontecer, sem que ninguém tenha culpa. Estamos no Brasil.
Passageiro frequente da ponte aérea Rio-São Paulo há seis anos, desde que comecei a trabalhar na piauí, devo ter ouvido essa ladainha da comissária de bordo algumas dezenas de vezes. Não saberia dizer a partir de que momento essas explicações que nada explicam grudaram na minha mente.
O fato é que a cada atraso passei a esperar, com certo prazer infantil, o momento em que a empresa encena dar satisfações ao cliente. Desde então, enquanto a moça uniformizada se desincumbe de seu script, do assento eu vou recriando mentalmente os meus próprios pronunciamentos: “O país chegou a essa situação por motivos operacionais, alheios à nossa vontade”; “Estamos nessa merda infinita por motivos operacionais, alheios à nossa vontade.” E por aí eu decolo, com pequenas variações, a depender do humor do dia (e do tamanho do atraso).
Quando pensei neste texto, antes que o Judiciário se pronunciasse sobre a data do julgamento de Lula, o primeiro título que me ocorreu foi “2018, o golpe que não terminou”. No entanto, embora me agradasse (a ponto de eu insistir em anunciá-lo aqui, depois de tê-lo abandonado), ele logo me pareceu condescendente com Lula e com o PT. Ele diz a verdade. Mas não diz toda a verdade.
Começo pela ressalva: com a narrativa do golpe, os petistas pretendem transformar Lula no verdadeiro “isentão” do país. Foi com essa alcunha que a militância do partido carimbou e perseguiu nas redes sociais os que não foram às ruas ou hesitaram em defender Dilma publicamente durante o impeachment. Como se alguém simpático à esquerda não tivesse o direito de ter dúvidas nem razões de sobra para estar perplexo com o desassombro com que se roubou o Estado nos governos do PT.
Isento, segundo o Houaiss, pode ser o sujeito “neutro, imparcial, que não se deixa seduzir”. Mas pode ser também aquele que “se encontra eximido, livre, desembaraçado, limpo de culpa”, coisa que Lula talvez imagine ser quando, por exemplo, diz desconfiar das acusações contra Sérgio Cabral, como fez recentemente.
A despeito disso, desde a destituição “mandrake” de Dilma Rousseff, o que de certa forma está no horizonte das intenções de todos que dela participaram, ou quase todos, é a inviabilização política de Lula. É esse o ponto de fuga do quadro que passou a se desenhar em 2015 e a questão decisiva que se coloca para o país na sucessão presidencial.
Óbvio que o PIB e as forças verde-amarelas que em torno dele se organizaram queriam, antes de tudo, se livrar do pesadelo que Dilma e seu governo passaram a representar para o país. A economia quebrou, a presidente não tinha, na verdade nunca teve, capacidade mínima de articulação política, os escândalos da “petrolândia” começaram a jorrar por todos os lados logo depois da reeleição – tudo isso é sabido. Mas, para além desse pesadelo, havia um fantasma. Foi também contra ele – esse fantasma ancestral, anterior à crise dilmista – que muita gente de bem se insurgiu.
Em 2016, enfim, o Brasil consumou algo no mínimo inusitado: o impeachment de um ex-presidente.
Tal extravagância ficou visível no próprio dia em que o impedimento de Dilma foi ratificado pelo Senado, quando Renan Calheiros, então presidente da Casa, inventou aquela gambiarra institucional, mandando às favas a Constituição: Dilma perdia o mandato, mas não os direitos políticos. Uma vez defenestrada a presidente, os direitos políticos que passavam a importar, ou que importava cassar, não eram os dela, mas os do cara. Não que esse raciocínio estivesse na cabeça dos senadores. Não é assim que funciona. Estou sugerindo apenas que o truque de Calheiros se ilumina se for pensado como um sintoma, como ensina Freud.
Que a saída de Dilma tenha paradoxalmente dado sobrevida ao fantasma é algo que a crônica política vem repetindo faz algum tempo, com razão. O ônus do desastre econômico foi transferido para os bucaneiros do PMDB e seus agregados – a estrada ficou livre para que Lula se reinventasse, ou, antes, buscasse reatar os pontos entre o presente e suas origens: como um saltimbanco, ele passou a percorrer o país no papel de vítima das elites e animador das massas estropiadas. Embora o número seja velho, isso ele sabe fazer.
É evidente também que a ressurreição de Lula está ligada à total ausência já não digo de popularidade, mas de empatia deste governo. Com exceção dos editorialistas do Estadão, ninguém gosta de Michel Temer. O governo que ele comanda é obsceno. Primeiro, pelas razões sabidas: escolham entre o jogo de malas de Geddel e a mala com rodinhas de Rocha Loures, o mordomo do mordomo deste filme de terror. Mas é obsceno também pela razão que o torna palatável aos olhos do mercado. A agenda liberal patrocinada por Temer só seria legítima com o lastro do voto. Nas atuais circunstâncias, ela serve de âncora para um governo espúrio, que troca sua impunidade pelos serviços e favores que vai prestando no atacado aos donos do dinheiro, ao mesmo tempo que barganha no varejo com os picaretas de sempre do Congresso. Parece simplista? Eu gostaria que fosse mais complexo. (Não estou sugerindo que o país não precise de reformas. Pessoas de esquerda e sensatas que entendem de economia – são poucas – não ignoram a necessidade de que as regras da Previdência sejam alteradas, para dar um exemplo.)
Chegamos, enfim, ao ano da eleição. E chegamos com Lula na condição de cabra marcado para morrer. Não nas urnas, em outubro, onde seria aceitável vê-lo ganhar ou perder, mas bem antes, pelas mãos dos três desembargadores da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre.
Como se sabe, os magistrados marcaram o julgamento para 24 de janeiro, encurtando os prazos que eles mesmos vinham observando para examinar os autos nas decisões relativas ao petrolão. A não ser no caso de uma surpresa, o TRF-4 deverá confirmar a sentença do juiz Sérgio Moro, que condenou Lula a nove anos e seis meses de prisão no rumoroso caso do tríplex do Guarujá. Também é quase certo que haverá divergências entre os três juízes no que tange à dosimetria da pena (quanto de cana, em que condições etc.), mas o fundamental é que, condenado em segunda instância, Lula estará inelegível pela Lei da Ficha Limpa.
A partir daí, sob o aspecto legal, sua candidatura ainda pode seguir respirando por aparelhos. Lula e o PT terão à disposição uma série de recursos judiciais que, em tese, caso não surja uma nova manobra para encurtar de vez a novela, lhes permitirão formalizar a candidatura à Presidência a partir de 20 de julho, conforme manda o calendário eleitoral. O imbróglio passaria então para as mãos do Tribunal Superior Eleitoral e até, possivelmente, do Supremo Tribunal Federal, sem que se possa dizer com absoluta certeza que estará decidido antes do primeiro turno da eleição, em 7 de outubro.
Tudo somado, Lula se parece com o Malandro de Chico Buarque: O cadáver do indigente/é evidente que morreu/e no entanto ele se move/como prova o Galileu.
Aos olhos dos seguidores de Sérgio Moro, o ex-presidente já é faz tempo um presunto, de pé junto, e com chulé, mas ainda falta combinar isso com o povo. Quando se olha para a pesquisa de intenções de votos do Datafolha divulgada no início de dezembro, além do fato de Lula liderar a corrida presidencial em todos os cenários, em primeiro e segundo turnos, o que chama a atenção é a faixa do eleitorado que quer vê-lo no Planalto mais uma vez. Os mais pobres, para resumir.
Entre os que têm renda familiar mensal de até dois salários mínimos (1 930 reais, equivalente a praticamente metade da população brasileira), Lula alcança 47% das preferências. No Nordeste, hoje ele seria eleito no primeiro turno – tem até 58% das intenções de voto na região, a depender do cenário analisado.
O cientista político André Singer destacou esse corte de classe numa de suas colunas recentes na Folha, intitulada “Lulismo e antilulismo”. A rejeição a Lula, lembrou Singer, que em março de 2016, às vésperas do impeachment de Dilma, chegou a ser encampada por 49% da população mais pobre, hoje refluiu para 27% nessa mesma faixa de renda, enquanto entre os mais ricos ela permanece altíssima, na casa dos 63%. A conclusão de Singer é que “rara vez o popular e o antipopular se confrontaram com tanta nitidez na história do país”.
Singer seria o primeiro a admitir que tem lado nesse confronto. Mas todo mundo, em alguma medida, tem lado – ninguém é neutro em matéria de política. A questão reside, muito mais, na maneira de lidar com isso. Digamos que a distinção que importa no debate intelectual se dá entre, de um lado, as pessoas que dizem o que pensam e pensam o que dizem, e, de outro, aquelas acostumadas a subordinar o que dizem e o que pensam a conveniências políticas ou missões partidárias. É isso, basicamente, que distingue um intelectual de um ideólogo. É isso, para não fugir do ringue, que diferencia André Singer de Marilena Chaui – ainda que ambos sejam quadros oficialmente vinculados ao PT. Fim da digressão.
A constatação de que Lula está encarnado no campo popular – e que isso deve significar alguma coisa pouco trivial num país com abismos de classe tão colossais – faz com que seu provável banimento da disputa eleitoral pela via da Justiça seja uma espécie de divisor de águas, diante do qual a democracia brasileira dificilmente sairá ilesa.
Isso não passou despercebido a comentaristas políticos que nada têm a ver com o PT. Dias antes que o TRF-4 se pronunciasse sobre a data do julgamento, Roberto Pompeu de Toledo escrevia em sua coluna na revista Veja: “Quem quer ver Lula derrotado deve torcer para que o seja nas urnas. Lula impedido será um fantasma a assombrar não apenas a eleição, mas o mandato presidencial que se seguirá.” Dias depois, com o julgamento já marcado, Demétrio Magnoli perguntava em sua coluna na Folha: “Estamos dispostos a subordinar os direitos políticos do eleitorado de Lula a um veredito provisório de três juízes federais do Rio Grande do Sul, sobre o qual pesará a suspeita (fundada ou não) de atropelo dos prazos judiciais costumeiros?”
O alvo de Magnoli era a Ficha Limpa, para ele incompatível com democracias vigorosas, nas quais “só uma sentença definitiva exclui o condenado da arena eleitoral”. É como se a lei criada para sanear a política representasse antes um vício, uma espécie de tutela indevida do Judiciário sobre o eleitor, traduzindo mais uma vez – agora digo eu – um sentimento arraigado na elite brasileira: a demofobia. “O brasileiro não sabe votar” – quantas vezes ouvimos (ou dissemos) isso?
Nem Pompeu de Toledo nem, muito menos, Magnoli são suspeitos de simpatia por Lula, o que nas atuais circunstâncias é uma razão a mais para prestar atenção ao que dizem. Ao mesmo tempo, parecem estar alertando para o risco iminente de algo que, na verdade, já aconteceu. O país ingressou num ponto sem volta, e não há no horizonte boa solução para o nó político-institucional em que se meteu.
Posso ouvir o coro dos legalistas se apressando em dizer que, pelo contrário, as instituições estão funcionando muito bem. Afastamos uma presidente seguindo todos os ritos constitucionais, atravessamos até aqui a pior recessão da história brasileira sem desordem social, julgamos e prendemos (não nessa ordem, mas isso é detalhe) os grandes responsáveis pela corrupção sistêmica do Estado, gente que até pouco tempo era protegida pela impunidade, essa sim uma mácula que nos envergonhava como nação. Tudo isso dentro da mais absoluta normalidade. Sendo assim, é uma coincidência infeliz que o senhor Luiz Inácio Lula da Silva esteja na iminência de se tornar inelegível, mas, embora tenha gosto em blasfemar, a ponto de se comparar a Jesus Cristo, ele é apenas um filho da República e, como qualquer outro cidadão, não está acima da lei. Sua constrangedora situação nada mais é do que o resultado casual da interação virtuosa entre diferentes esferas de Poder (a Polícia, o Ministério Público, a Justiça, o calendário eleitoral) num regime democrático funcionando a pleno vapor.
Os legalistas de fato têm um ponto. Eu gostaria de viver nesse país que eles descrevem.
A aeromoça reaparece nos meus voos mentais para dizer, com a mesma serenidade protocolar, que algo deu errado, mas ninguém é culpado por isso: “A democracia brasileira está sendo asfixiada por motivos operacionais, alheios à nossa vontade.”
Em 1989, Mario Amato entrou involuntariamente para o anedotário da política nacional. O então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo falava muito sério quando se dirigiu a uma plateia de 120 lideranças do mundo corporativo: “Se Lula ganhar as eleições, aqui o número de empresários que fugiriam não seria menor do que 800 mil.” Corria o mês de outubro, estávamos a pouco mais de trinta dias do primeiro turno, e o número de virtuais fugitivos que saiu da cabeça alarmada do empresário fazia alusão à Revolução dos Cravos, em 1974, quando se estima que 80 mil empresários abandonaram Portugal. O êxodo na antiga colônia seria dez vezes maior.
Lula passou para o segundo turno, mas perdeu a Presidência para Fernando Collor, como se sabe. Os empresários não fugiram da pátria amada, mas muita gente quebrou e teve a vida arruinada logo a seguir, quando o Caçador de Marajás decidiu confiscar a poupança dos brasileiros a fim de debelar a inflação. Deu tudo errado, é claro.
Em 1989 eu era um novato, iniciando a carreira de jornalista como redator do caderno Ilustrada, na Folha. Foi a minha primeira eleição presidencial e, ao mesmo tempo, a última de que participei apenas como espectador, sem envolvimento profissional.
Três anos depois, quando Collor sofreu o impeachment, eu editava na página 3 do jornal a seção Tendências/Debates, que àquela época ainda se beneficiava do prestígio de ter sido um catalisador da chamada “sociedade civil” (jargão dos anos 70, em oposição ao poder militar) durante a democratização.
Na véspera da votação da Câmara que afastaria o presidente, lembro de uma conversa telefônica com Roberto Jefferson, então líder da tropa de choque collorida, de quem iríamos publicar um artigo para dar voz aos que estavam sendo derrotados. Eu não o conhecia pessoalmente, e a conversa não deve ter durado muito. O que retive dela foi a insistência com que Jefferson dizia que o presidente estava sendo vítima de uma imensa injustiça, que deputados haviam sido comprados para derrubá-lo, que estava em curso uma grande armação – frases essas seguidas sempre de perguntas que solicitavam o meu assentimento: “Você não concorda comigo, Barros?”, “Não acha isso também, Barros?”, “Não tem conhecimento disso, Barros?” Junto com a voz de tenor eu escutava um ruído esquisito – nhec, nhec, nhec –, que, justa ou injustamente (até hoje não sei), concluí ser um grampo feito por ele. Desliguei com a nítida sensação de que havia sido gravado por um aparelho rudimentar de um vilão desesperado, como se fosse um agente da polícia política da Alemanha Oriental às vésperas da queda do Muro de Berlim.
Tudo isso pertence a um passado remoto que desencavo da memória sem muito método. Não tenho dúvida de que o impeachment de Collor representou um momento de fortalecimento da democracia e de grande vitalidade da imprensa brasileira. E que hoje acontece mais ou menos o contrário. Vivemos uma espécie de exaustão da democracia e de fragilização do jornalismo.
Entre aquele momento e o atual muita coisa mudou. A partir do Plano Real e da eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, o Brasil ingressou num período virtuoso que durou pelo menos até 2010, quando Lula elegeu sua sucessora. O descarrilamento desse ciclo dourado – no qual parecia que havíamos começado a pagar uma dívida social de séculos e a construir pelo menos um arremedo de país decente – desfaz um conjunto imenso de ilusões a respeito de nossas possibilidades como nação.
Os anos 80 do jaquetão de Sarney reencarnaram nas mesóclises de Temer. Os sinais de retrocesso estão em toda parte. Um amigo mais otimista e mais atento aos indicadores sociais me alerta, no entanto, para o fato de que o veredicto histórico sobre a natureza e a extensão do estrago atual ainda está em aberto. Pode não ser tão ruim. Pode melhorar logo mais adiante. Ele deve estar certo. Nossos desastres afinal nunca são definitivos. Mas não consigo afastar a convicção de que o revés atual expôs o que há de cronicamente inviável no país.
Depois de quase trinta anos, o espírito de Mario Amato voltou a se manifestar. Quando ficou claro que Jair Bolsonaro estava descolando dos demais candidatos para assumir o segundo lugar nas pesquisas, e que Lula, ao mesmo tempo, consolidava sua liderança, começaram a pipocar na tevê, nas redes sociais, nas revistas e nos jornais sinais de alerta sobre a ameaça que um e outro representam para o futuro. Com desvantagem para Lula. Fico com a sensação incômoda de que está se formando um consenso tácito, uma espécie de entendimento implícito de que, a despeito do resultado da Justiça, Lula não pode ser candidato.
O patriarca dessa mentalidade, da qual temos hoje, como tivemos em 1989, uma espécie de eco diluído, é Carlos Lacerda, autor da famosa formulação contra Getúlio Vargas em 1950: “Não pode ser candidato. Se for, não pode ser eleito. Se eleito, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar.”
Em novembro, a Folha publicou uma reportagem intitulada “Mercado flerta com agenda reformista de Bolsonaro”. Em matérias desse tipo, raramente essa entidade – o mercado – está representada por gente graúda do PIB, que não perde tempo com isso. Quem costuma falar em nome do mercado são profissionais do “médio clero” de agências e bancos de investimento, para quem aparecer é uma forma de acumular prestígio junto à clientela.
Pois bem, nessa reportagem, um desses porta-vozes da banca dizia que, “pela conversa com os investidores, o Lula hoje é um problema. Pode ser disruptivo”. Bolsonaro, completava, “tenderia a causar um estresse menor”. Uma pesquisa realizada pela XP Investimentos, apresentada no texto como “a maior corretora independente do país”, corroborava o vaticínio de que entre o ex-presidente petista e o discípulo do coronel Brilhante Ustra, o primeiro seria mais danoso ao ambiente de negócios – ou mais “disruptivo”, para repetir a expressão que sintetiza o tamanho da encrenca.
No mesmo mês, a revista Veja trouxe uma capa com os rostos de Lula e Bolsonaro cortados pela metade, um em cada extremo da página. No centro, a manchete: “A POLÍTICA QUE ASSUSTA.” Atrás das letras vermelhas, havia uma silhueta pontilhada e, dentro dela, o enunciado: “Com Lula e Bolsonaro liderando as pesquisas, ganha fôlego a busca por nomes de centro, como Luciano Huck e Henrique Meirelles.” E que fôlego!
Dias antes que o próprio Huck, comparando-se a Ulisses – não o do PMDB, mas o de Homero –, viesse anunciar ao mercado, na página 3 da Folha, que havia resistido ao canto das sereias e desistia de sua aventura à Presidência, o Estadão parecia apostar todas as suas fichas na candidatura do apresentador do Caldeirão. No dia 18 de novembro, a colunista Eliane Cantanhêde anunciava: “Huck é para valer.” Dizia, entre outras coisas, que “Huck não é um Silvio Santos e tem a USP no DNA”, discorrendo a seguir sobre a filiação do rapaz.
Cinco dias depois, em 23 de novembro, o jornal estampava na primeira página, em manchete: “Aprovação a Huck dispara e atinge 60%, mostra pesquisa.” Seria uma bomba, se uma bomba fosse. Lendo o texto que mereceu o principal destaque da edição, ficamos sabendo que não se tratava de uma pesquisa de intenção de voto, mas da resposta à seguinte questão: “Agora vou ler o nome de alguns políticos e gostaria de saber se o(a) senhor(a) aprova ou desaprova a maneira como eles vêm atuando no país.” Huck, que não é político, bombou. Pergunto se essa operação não pode ser enquadrada na categoria das fake news. O jornalismo profissional não está ameaçado apenas pela selvageria das redes sociais.
No dia 27 de novembro, Luciano Huck publicou a sua carta de renúncia, deixando o Estadão órfão, por assim dizer. Seu artigo “No rumo” vale um minuto de atenção. Huck não é político, mas escreve como um. O tom da peça é piegas, confessional, autocomplacente, repleto de boas intenções e lugares-comuns. “Carrego desde sempre, genuinamente, enorme paixão e curiosidade pelo outro”; “Gosto muito de gente. Sempre gostei”; “Sinto na pele o pulso das ruas”; “Ando há anos e anos por lugares ricos, paupérrimos, super ou subdesenvolvidos, em guerra, centros moderníssimos de saber, cantos absolutamente esquecidos pelo desenvolvimento. Sempre atrás da mesma coisa: gente boa.”
Há um eco de Geraldo Alckmin nessas platitudes. É o governador de São Paulo quem gosta de repetir, com a voz pausada, as ênfases silábicas de professor de cursinho e sua eterna expressão de coroinha: “Governar é gostar de gente e cuidar de pessoas.” O texto de Huck, no entanto, soa tão sincero quanto o desapego que ele tem pelo dinheiro. Saímos do artigo com a sensação de que sua decisão não é irreversível. Talvez Cantanhêde seja uma visionária e Huck ainda venha a ser “para valer”.
Seja como for, é preciso um ambiente muito rebaixado para que ele possa ser alçado por alguém como Fernando Henrique Cardoso à condição de representante do “novo” na política, como ocorreu numa entrevista à Folha. Huck é um apresentador de programa de auditório da Globo, alguém que se projetou misturando entretenimento de massa com assistencialismo. Isso é velho. É conservador. É quase sempre atroz, entre outras coisas porque empresta a quem patrocina caridades uma superioridade moral problemática, que se nutre da violência social brasileira. Nessa área, eu prefiro o escracho do Chacrinha, que atirava postas de peixe sobre o auditório enquanto perguntava com deboche: “Vocês querem bacalhau?!” O teatro da humilhação pelo menos não vinha embrulhado em cordialidade nem usava a máscara do bom-mocismo.
Aojeriza aos políticos, o descrédito dos partidos, o espírito de facção que tomou conta de setores do Judiciário e do Ministério Público, a sensação aguda de que as instituições, a começar pelo Congresso, operam em causa própria e não representam aspirações coletivas nem organizam demandas da sociedade – isso tudo se soma ao recrudescimento da violência e a evidências cotidianas de que os serviços públicos funcionam muito mal, quando não estão à beira do colapso. O exemplo do Rio de Janeiro talvez seja o mais representativo do atual desmanche, até porque a cidade costuma ser uma biruta da direção em que sopra o vento em escala nacional. Alguém já disse que o Rio é um trailer do Brasil.
Jair Bolsonaro por enquanto é o beneficiário desse caldeirão. Com ele, a extrema direita deixou de ser uma força residual, a opção de uma franja da sociedade, para adquirir certa expressão e presença nacional. Numa eleição marcada por um grau exasperante de incertezas, sabemos isto: que o conservadorismo extremo jogará um papel inédito na arena política desde a redemocratização.
Ele foi gestado nas manifestações que desembocaram na queda de Dilma. Quando se visita o noticiário dos últimos anos, são recorrentes os relatos de uma certa tensão entre o movimento mais amplo pelo impeachment, em que prevalece o antipetismo por assim dizer “democrático” (com aspas mesmo), e os defensores da intervenção militar no país.
“Pedido de intervenção militar racha passeata anti-Dilma na Paulista”, diz o Estadão em 15 de novembro de 2014, logo depois da eleição; “Manifestação no Rio mistura impeachment e golpe militar”, escreve o jornal O Dia em 15 de março de 2015; “Protestos contra Dilma coincidem com a data do golpe militar AI-5”, estampa o Valor Econômico em 12 de dezembro de 2015. Os exemplos poderiam se multiplicar. Há mal-estar, há eventuais enfrentamentos, mas não há incompatibilidade plena entre a massa verde-amarela e os nostálgicos do regime autoritário. Eles se toleraram.
“Há um exagero da imprensa em relação a meia dúzia de gatos pingados que defendem a intervenção militar. É evidente que sou contra e o PSDB também”, despachou o senador Aloysio Nunes na avenida Paulista, ainda em 2014, quando Aécio Neves podia andar na rua. Os gatos pingados se multiplicaram no lusco-fusco do antipetismo. A energia social mobilizada pelo impeachment (deflagrado formalmente por Eduardo Cunha, não esqueçamos) redundou num imenso desrecalque conservador, no qual está presente uma espécie de “revanche da província, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em lei”, como descreveu Roberto Schwarz num ensaio de 1970 ao tratar das forças que haviam sido liberadas pelo golpe militar de 1964.
À luz disso pode-se pensar na cruzada moralista do MBL, por exemplo. Ela representa um deslocamento da fúria conservadora na direção dos costumes depois que a bandeira do combate à corrupção lhes foi subtraída, com a queda do PT – afinal, não há como defender a decência na condução da coisa pública e apoiar o governo Temer ao mesmo tempo.
Embora Jair Bolsonaro se conecte bem com esse espírito, não acredito que consiga ir muito mais longe do que já foi como candidato. Sim, eu sei que a imprensa não levou Trump a sério, que o establishment não levou Trump a sério, que seu próprio partido não o levou a sério, que ninguém acreditou naquele paspalhão – e ele é hoje o presidente dos Estados Unidos. Estava enraizado num ressentimento tão difuso quanto monumental, mas estranhamente invisível aos olhos de todos.
Tosco, meio aparvalhado, infantiloide, fascistão à moda brasileira, Bolsonaro me parece até mais crível do que Trump. Mas não consigo vê-lo como um nome viável quando a campanha afunilar. Não tem partido, não tem tempo de tevê, não terá o PIB ao seu lado, ao contrário do que diz o “mercado” ouvido pela Folha. De qualquer modo, mesmo se perder tudo daqui em diante, Bolsonaro já ganhou. Difícil, aliás, imaginar alguém mais vitorioso no processo dos últimos anos.
A aposta do PIB, até segunda ordem, será em Geraldo Alckmin. Não se sabe ainda se ele conseguirá atravessar a via Dutra, se será capaz de sensibilizar o Rio com aquele seu jeito de Pin-da-mo-nhan-ga-ba. Sua fala, no entanto, será mais mansa que a do militar boquirroto. O país não precisa de gente que cospe fogo, mas de gente que gosta de gente – e sobretudo de quem trabalha. Bolsonaro late, Alckmin faz.
Ninguém percebeu, mas a campanha do tucano à Presidência foi lançada bem antes da convenção do partido em dezembro, ao cair da tarde de um domingo de setembro, no bairro do Morumbi, em São Paulo, quando a Polícia Civil armou uma imensa cilada, com mais de 100 homens, para capturar um bando de assaltantes que aterrorizava a região. Assim que saíram do casarão que haviam acabado de assaltar, foram todos diligentemente fuzilados. A queima de fogos durou alguns minutos, dez bandidos, dez cadáveres, não sobrou ninguém para contar a história. Quem é que precisa de Bolsonaro?
“As portas da aeronave foram fechadas sem atraso, cumprindo o nosso compromisso com a pontualidade.” Ouço a aeromoça e penso que nem tudo está perdido, ao mesmo tempo que sou tomado por uma tristeza difícil de definir.
Abro então um livro que há anos prometia ler, uma das muitas lacunas e frustrações que a gente vai acumulando ao longo da vida. É Conversa na Catedral, de Mario Vargas Llosa. A cena de abertura descreve um repórter deixando a redação do jornal La Crónica, em Lima. Ele olha a paisagem em volta – “carros, edifícios desiguais e desbotados, esqueletos de anúncios luminosos flutuando na neblina, o meio-dia cinzento” – e pergunta: “Em que momento o Peru tinha se fodido?” Anda um pouco pela rua, “de mãos nos bolsos, cabisbaixo, escoltado por pedestres”, e pensa que ele era como o Peru, “também tinha se fodido em algum momento.” Mas “em qual”?
O avião acaba de decolar.
*Publicado na revista piauí