por Fernando Muniz
A pedrada foi certeira, bem na testa da prima; brincavam de meteorito e o guri atirou forte demais. A pedra, pontuda, abriu um talho. Três pontos e um belo galo. A menina foi dormir cansada, de tanto chorar.
O pai, ao chegar, escuta com paciência o relato do acidente, feito pela avó, cheio de detalhes e desculpando o menino. Vai ao quarto da filha – ninguém ousa acompanhá-lo. Olha o curativo, enorme. Coça a barba e range os dentes.
Sempre tão alegre e contador de causos, desta vez o homem janta em silêncio. O menino, cabisbaixo, não tira os olhos do prato. A avó tenta começar alguma conversa; tio e sobrinho não prestam atenção.
Na hora de dormir o garoto segue a avó, para a casa dos fundos. “Guri, espere um pouco. Vamos ver televisão”. A avó faz um gesto de resistência, mas o olhar dele a assusta. O menino senta na sala, no sofá oposto ao do tio. Que não tira os olhos dele.
O filme, de bangue-bangue, é velho e sem graça. Logo o menino perde o interesse. Mas não se atreve a sair do lugar.
Meia hora naquela situação e o tio quebra o silêncio. “Sabe que, aqui pelas redondezas, de vez em quando aparece lobisomem?” O menino sente um frio na barriga. E o homem continua. “É. Infelizmente andam por aqui. E são ferozes. Ah, como são”. A voz dele, pausada, quer cortar a carne do menino. “Eles gostam de devorar gente. Eu mesmo já dei uns tiros pra cima, pra espantar eles daqui”. O garoto se lembra da prima, tão querida, chorando, cheia de sangue no rosto.
“Bom, acho que é hora de dormir, né? Está ficando tarde e, daqui a pouco, esses bicharocos saem pra caçar. Boa noite. E não fique zanzando pelo jardim. Direto pra casa”.
O trajeto é curto, uns cinquenta passos. A noite, sem lua, é varrida por um vento sul. O garotinho acelera e chega próximo à varanda de sua avó. Sente-se aliviado, apesar do frio.
Mas um urro, primitivo, gutural, pleno de raiva e ódio, vindo de outro mundo, rasga a noite e assusta até os cachorros.
O menino molha as calças, enquanto esmurra a porta da avó.
Indefeso.