14:21Vivemos no país das finanças públicas mal-assombradas

por José Mauricio Conti*, no site Consultor Jurídico (ConJur)

Nos últimos dias, a crise econômica que parece não cessar trouxe à tona um dos muitos problemas enfrentados pelo Direito Financeiro, mais especificamente pelos orçamentos públicos. O orçamento, lei já reconhecida como a mais importante logo após a Constituição[1], tem múltiplas funções atualmente, destacando-se o controle, a gestão e o planejamento, tendo a transparência assumido relevância fundamental para que essas funções sejam cumpridas.

O orçamento deve conter todas as receitas e despesas, expondo a atividade financeira do Estado, e deixar claro o que é feito com o dinheiro público. Um orçamento bem elaborado, com clareza, abrangência e transparência não só orienta toda a administração pública como também permite à sociedade, com todos os agentes sociais e econômicos, ter maior segurança no planejamento de suas próprias atividades. Um instrumento que sempre foi e é cada vez mais indispensável para o desenvolvimento econômico estável e equilibrado.

Nosso orçamento experimentou um longo caminho para chegar onde está. E, como se verá, falta muito para atingir o ideal. Ainda precisamos avançar, e notícias recentes indicam retrocessos, mostrando que há ainda obstáculos a vencer, e não são poucos.

“Capitais criam ‘orçamentos paralelos’ para ocultar gastos e fechar as contas”, noticiou a Folha de S.Paulo no último dia 7 de agosto[2]. Elenca a notícia as várias distorções observadas na execução orçamentária de cidades brasileiras, onde se constataram operações que “contornavam” a transparência das informações orçamentárias, como Porto Alegre, em que gastos ocorriam “na prateleira”; ou Curitiba, em que foi descoberta a existência de um sistema de execução orçamentária paralelo ao oficial. E no Rio de Janeiro, despesas executadas “desapareciam” do sistema por meio de um “servidor fictício”. E, assim, com “receitas bilionárias, os três municípios descobriram ‘orçamentos paralelos’, descolados das contas oficiais e nos quais centenas de gastos eram feitos de maneira informal, sem nenhum tipo de registro no orçamento”[3].

A realização de despesa pública submete-se a um regime jurídico próprio e rigoroso, para garantir a legalidade e a correta aplicação dos recursos, e tem várias fases que precisam ser cumpridas. Inicia-se com o empenho da despesa, “ato emanado de autoridade competente que cria para o Estado obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição”, reservando-se o valor no orçamento para permitir o pagamento, sendo então o valor liquidado para só então proceder-se ao pagamento (Lei 4.320/1964, artigos 58 a 65). No entanto, constataram-se casos de determinação da execução das despesas sem prévio empenho, dando origem a um verdadeiro caixa dois, ficando as obrigações do poder público, como sugere a notícia, em uma verdadeira “nuvem orçamentária”, sem registro no orçamento. Criavam-se assim “esqueletos”, com obrigações de pagamentos “escondidas no armário”, que poderiam aparecer a qualquer momento e sem aviso, onerando os próximos gestores, surpreendidos com gastos sem qualquer previsão ou registro.

Em um dos exemplos citados na notícia, o prefeito Marchezan Júnior, de Porto Alegre, informou ter encontrado R$ 20 milhões em despesas “na prateleira”, sem empenho, o equivalente a 1,7% do orçamento; em outro exemplo, Rafael Greca, prefeito de Curitiba, diz ter encontrado ainda mais, R$ 614 milhões, em despesas sem empenho, o equivalente a 7% do orçamento.

São operações que violam os preceitos da legislação financeira e já foram apuradas pelo sistema de fiscalização, como se pode constatar de decisões do Tribunal de Contas da União: “A assunção de dívida com fornecedores originária de despesas não registradas na contabilidade indica que essas foram realizadas sem prévio empenho e não observaram o princípio contábil da competência, o que viola o art. 42 da Lei Complementar 101/2000 (LRF) e os artigos 35, 60, 88 e 90 da Lei 4320/1964”[4]; “É ilegal a autorização para realizar despesa sem prévio empenho, pois contraria o art. 60 da Lei 4.320/1964”[5].

Essa realização de despesas sem respaldo nas dotações orçamentárias e sem prévio empenho atenta contra diversos dispositivos legais, como mencionado, demonstrando o pouco caso e a falta de seriedade dispensadas às normas de Direito Financeiro. Disso resulta total insegurança aos contratantes, falta de transparência e ausência de planejamento, dificultando sobremaneira a fiscalização, dando margem a toda sorte de irregularidades, mau uso e desvio de recursos públicos.

Mas não é só a realização de despesas sem o necessário empenho prévio que provoca essas distorções; no Rio de Janeiro, como consta da notícia, empenhos eram cancelados, e despesas que deveriam ser pagas “desapareciam” temporariamente, para evitar que contabilmente constassem como valores a pagar deixados para os exercícios financeiros subsequentes.

Já chamamos a atenção em colunas anteriores para várias questões que colaboram para esse déficit de transparência orçamentária. É o caso das despesas que ficam à margem do orçamento por razões várias, conhecidas como off-budget expenditures (evidenciando que o problema não é uma exclusividade nacional…), o que se pode verificar na ampla gama de “gastos tributários”, como os benefícios creditícios que tratamos na coluna BNDES tem o dever de colaborar com a transparência dos gastos públicos[6].

Irregularidades nas despesas de final de ano, com transferência abusiva de restos a pagar para o exercício seguinte, criam o que também tem sido denominado de um “orçamento paralelo” que o gestor deve cumprir no exercício subsequente, tendo em vista as muitas despesas já empenhadas e não pagas no exercício anterior. Já se transformaram em prática corriqueira na administração pública, estando presentes nos vários entes federados[7].

As famosas “pedaladas fiscais” também importaram em postergação de pagamentos de forma a que ficassem “escondidos” na contabilidade pública e obscurecessem despesas no orçamento. Foram severamente punidas com o afastamento da presidente de seu cargo por impeachment. Mas parece que, apesar disso, não foi suficiente para fazer com que os governantes tenham respeito pelas normas de Direito Financeiro.

É uma pena, pois o avanço do Direito Financeiro é um caminho sem volta.

Retomando o que havia mencionado no início da coluna, a evolução dos orçamentos percorreu um longo caminho. Nesse percurso, cabe destaque aos princípios da unidade e da universalidade, bem como do orçamento bruto, que buscam a plenitude orçamental. São regras clássicas do orçamento — justamente aquelas que permitem sua adequada organização para atingir aos fins nele designados. A Lei 4.320/1964, logo em seu artigo 2º, caput, estabelece que a “Lei de Orçamento conterá a discriminação da receita e despesas de forma a evidenciar a política econômico-financeira e o programa de trabalho do governo, obedecidos os princípios de unidade, universalidade e anualidade”, especificando e detalhando seu conteúdo (parágrafos 1º e 2º); “compreenderá todas as receitas, inclusive as operações de crédito autorizadas por lei” (artigo 3º), e “todas as receitas e despesas constarão da Lei de Orçamento pelos seus totais, vedadas quaisquer deduções” (artigo 6º). O princípio da unidade, destaca Giuliani Fonrouge, permite apreciar se há equilíbrio orçamentário (pois todas as despesas e receitas estão contidas em um único documento), permite conhecer a magnitude do orçamento, dificulta manobras contábeis e permite o controle parlamentar[8]. Referindo-se à universalidade, Heleno Torres destaca que “a dispersão de receitas ou despesas em distintos orçamentos não asseguraria transparência valorativa das finanças públicas, daí a necessidade de ter-se a acomodação de todos em um documento único, para o controle das finanças públicas”, decorrendo da exigência do “holismo orçamentário, a partir da unidade que exige todas as receitas e despesas identificadas no orçamento”[9]. Esse conjunto de princípios mostram ser necessário que a autoridade orçamentária tenha conhecimento do conjunto das finanças para que tome sua decisão e, assim, exerça seu poder de autorização e controle, sem que seja induzida a erro[10]. E se a Constituição prevê, no artigo 165, parágrafo 5º, a separação da lei orçamentária em três partes (o orçamento fiscal, de investimentos das estatais e da seguridade social), isso não significa o afastamento do princípio da unidade. Ao contrário, todas as três peças compõem um mesmo documento, dividido de forma a conferir maior racionalidade a cada um de seus componentes, mas levados em conjunto ao Poder Legislativo. São princípios orçamentários que não admitem desvios, como está ocorrendo. Um retrocesso inaceitável.

Do jeito que as coisas caminham, persistindo a crise e a consequente falta de recursos, com a criatividade e o “jeitinho” brasileiro atuando “a todo vapor”, a doutrina do Direito Financeiro terá daqui a pouco que incorporar ao seu vocabulário a expressão “orçamento-fantasma” em substituição à referência “peça de ficção”! Como se já não bastasse a “súmula-fantasma”[11]… Receio que os tribunais de Contas constatem que, quanto mais fiscalizam, mais assombração aparece!

Esse verdadeiro “mundo” de orçamentos paralelos, caixas-pretas, súmulas-fantasma e esqueletos escondidos no armário nos colocam em um verdadeiro “museu de horrores” financeiro. E são tantos os envolvidos e tantas as irregularidades que, desta vez, não vai dar para dizer que o culpado é somente o mordomo…


[1] Min. Carlos Ayres Britto, ADI-MC 4.048-1/DF, j. 14/5/2008, p. 92 dos autos.
[2] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/08/1907747-capitais-criam-orcamentos-paralelos-para-ocultar-gastos-e-fechar-as-contas.shtml.
[3] Notícia citada.
[4] Acórdão 11.461/2011, enunciado.
[5] Acórdão 423/2011, enunciado. No mesmo sentido: acórdãos TCU 7.206/2012 e 1.335/2012.
[6] Publicada em 17/11/2015. E que consta do livro Levando o Direito Financeiro a Sério, edição Blucher-Conjur, 2016, pp. 229-234, cuja versão impressa pode ser adquirida na Livraria ConJur, e a versão eletrônica gratuita, baixada no site da editora Blucher.
[7] Já me referi ao tema na coluna “O final de ano, as dívidas e os ‘restos a pagar'”, publicada em 17/12/2013. Está no livro mencionado na nota de rodapé 6, p. 142.
[8] GIULIANI FONROUGE, Carlos M. Derecho financiero. 5ª ed. Buenos Aires: Depalma, 1993. vol. 1, p. 184-185.
[9] Direito Constitucional Financeiro, RT, 2014, p. 379.
[10] Ver, a propósito, LOCHAGIN, Gabriel. A Unificação dos Orçamentos Públicos pela Constituição de 1988. In: CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando F. Orçamentos Públicos e Direito Financeiro. São Paulo: RT, 2011, pp.
[11] Coluna “Benefícios fiscais, partilha de receitas e a ‘súmula-fantasma’ do STF”, publicada em 13/12/2016.

 

* é juiz de Direito em São Paulo, professor associado da Faculdade de Direito da USP, doutor e livre-docente em Direito Financeiro pela USP.

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