por Roberto Prado
Eu estava matutando cá com meus botões. Mas, como a roupa que uso não tem botão, garrei a imaginar se não somos todos um pouco responsáveis pela preservação das obras geniais que cruzam nosso caminho, tanto quanto pelo ar, pela água, pelas plantas, pelos bichos.
Confesso a você – e peço que espalhe – que senti um tantinho de culpa ao verificar a degradação do habitat literário, a imundície jogada na terceira margem do rio, a asfixiante psicosfera que paira sobre a nação zumbi. O frágil ecossistema intelectual nativo virou atoleiro e, nesse brejo das almas, é natural que os tímidos pandas se recolham à sua extinção e os mosquitos da malária reinem absolutos. A gente deste século, assombrada, vê as últimas reservas cercadas de símios, esses, sim, sempre dispostos a bater no peito, arremessar fezes e urinar nos cantos para demarcar seus territórios.
Agora chega desta ladainha: vamos empunhar as bordunas do espírito e defender a biodiversidade humana. Com muito respeito, é claro, pois sem ele você morre atropelado pelo carrinho de sorveteiro – como nos ensinou Nelson Rodrigues.
Para começo de conversa, fim de papo, como disse o Marcos Prado: se eu, que sou eu, de vez em quando coloca um pouco de oxigênio nesta mistura, você, que é muito mais esperto, certamente será capaz de colocar muito mais. A primeira lufada de ar fresco, perfumado de araucária, eu mandei vir do Jamil Snege: “Já inspecionei a proa, / amarrei a carga, / desatei a vela. / O vento sopra forte / e enfuna meu coração de alegria. / Agora é contigo, Senhor. / Toma o leme / e risca o rumo do meu barco / – não penses que irei por este mar sozinho.”
E de Minas Gerais, para as emergências asmáticas da vida, carrego sempre comigo uma bombinha de Affonso Ávila e o ar de sua graça: “dentro da faixa / fora do perigo / dentro da fauna / fora do perigo / dentro da farsa / fora do perigo / dentro do falso / fora do perigo / dentro do fácil / fora do perigo.”
No meio do caminho tinha um Bertolt Brecht e com ele, respirando fundo, a gente aprende que o Brasil é lá e a Alemanha é aqui: “Sento na beira da estrada / Enquanto o motorista troca a roda. / Não gosto do lugar de onde venho. / Não gosto do lugar para onde vou. / Então por que espero essa troca de roda / Com tanta impaciência?”
Da água corrente de uma montanha do Japão veio o Kobayashi Issa, para refrescar nossa pobre alminha com coisas como “o mendigo olha / e reconhecendo-me / devolve a esmola “ e molhar nossos olhos com uma alegria quase extinta: “a neve mexe / no calor das crianças / a aldeia se derrete”.
Bem, isso já é um começo. Agora é com você. Mas eu já vou avisando que participar dessa cruzada pela melhoria da atmosfera mental do país é arrumar para a cabecinha e encarar a ira da massa ensandecida (procedimento que eu sugiro seja realizado com bom humor, malícia e precisão). Portanto, nada de reclamações. A batalha é inglória para quem procura sarna para coçar, chifre em cavalo, cabelo em ovo – coisas que, muitas vezes, achará. Mas, em plena desgrama, garanto que, de vez em quando, ouvirá o Domingos Pellegrini, direto do seu sítio: “Cadê os chinelos / aquele sonho cadê / vou procurar de joelhos / assim já estou pronto para agradecer.”
Leia, espalhe e preserve o que é bom. Numa dessas você encontra por aí, soprando com o vento pelas ruas de Curitiba, os mestres Marcos Prado e Márcio Cobaia Goedert no exato momento em que flagaram e eternizaram um simples freqüentador da birosca de uma periferia qualquer: “o velho e o bar // o velhinho é a alma do negócio / deixa a nota amassada e sai catando cavaco / pensou que via o carlos drummond de andrade / mas era uma valeta no meio do caminho / o pau d’água mergulhou na areia movediça / transformando-se no monstro do pântano”.
E mais não digo, pois os meus botões preferiram guardar a boca pra comer farinha.
Notas: 1) “Apela para a ignorância o ser de alma macaca” – verso emprestado do poema “Todos os lugares a deus” de Marcos Prado e Antonio Thadeu Wojciechowski. 2) Poema de Bertolt Brecht – versão brasileira: Roberto Prado. 3) Poemas de Kobayashi Issa – versão brasileira: Roberto Prado e Antonio Thadeu Wojciechowski