por Fernando Muniz
“Professor, sinto muito, mas não dá mais. Segunda que vem começo no Corpo de Bombeiros e lá é dedicação exclusiva” – coça a carapinha, encabulado com a solenidade daquelas palavras, em seus quase dois metros de altura.
“Mas rapaz… não dá para encarar nem a primeira fase? Escalo você nos finais de semana!”
“Dá não, professor. Se o major souber que eu entrei em campo para jogar profissional, nem preciso aparecer no batalhão”.
Agora é que são elas. O segundo goleiro tem medo da bola e o terceiro, então, mentiu a idade para entrar no time. O cartola segue as evoluções da piazada em seus exercícios, todo mundo acabrunhado naquele segundo dia do ano, calorento, sem nuvens.
Fecha a cortina e liga o ar condicionado. Fuça a memória atrás de algum favor que lhe devam, alguém que possa ajudá-lo, algum jogador em fim de carreira disponível. Nada. Pega o telefone e começa a discar. Desce a tabela do último campeonato até que atendem, no sexto colocado.
“Rapaz, que satisfação!” – do outro lado da linha acham gozado tanta alegria. Coisa de recém-chegado à primeira divisão, decerto.
Conversam amenidades, o rumo da prosa esfria e o aflito dispara, lá pelas tantas: “tens um goleiro aí para me emprestar? Estreio domingo e os daqui não tenho como escalar. E nem te preocupes com as luvas, que eu tiro do meu bolso!”. Lá se foi o segundo goleiro do sexto colocado no último campeonato, um tanto infeliz por largar a cidade grande e parar na várzea. O consolo é que vai ser titular. Foi o que prometeram.
A crônica esportiva local não perdoa: “arrumaram um rapa de tacho para plantar no gol. Que falta de respeito com a torcida!”. O cartola não se abala. “Essa imprensa daqui é uma vergonha! Ao invés de ajudar, só arruma defeito! Já saem julgando o moleque antes dele entrar em campo. Que venham dirigir o clube, se são tão bons assim!” – e encerra a coletiva, antes de alguém se habilitar.
Chega o domingo; estádio lotado. Prefeito, vereadores, diretor do fórum, todos lá, inclusive o major dos Bombeiros. O cartola reza para que o time não faça feio. Lembra-se do goleiro improvisado e solta um suspiro. Entra com o pé esquerdo em campo, assim o azar desiste de assombrá-lo. Crença antiga, que às vezes dá certo.
Primeiro tempo e nada de gol. Jogo marrento, com os times se estudando. Coisa de profissional, dizem. O público fica um pouco arredio, balança o alambrado, mas vá lá, é a primeira partida do campeonato, o pessoal precisa se acalmar.
No intervalo o cartola não se aguenta e quer entrar no vestiário, mas o treinador não deixa. “Vai quebrar a concentração do elenco!”. Pergunta sobre o novato; o treinador o espanta com palavrões.
E o jogo recomeça. O centroavante adversário senta a bota do meio de campo logo aos trinta segundos, com os jogadores ainda sob o efeito do intervalo. A bola sobe, faz um arco elegante, passa rente ao zagueiro e quica na pequena área. Coisa fácil de defender. Ela perde força e o novato corre buscá-la, com classe. Mas erra os cálculos e a bola entra no gol, serena, por baixo das pernas. Ninguém acredita.
Vaias, chinelos e até um rádio de pilha caem sobre o rapaz, que, apavorado, enfia-se no vestiário – seguido pelos companheiros de time, prontos para surrá-lo. Os adversários acham graça, mas logo saem correndo também. A torcida derruba o alambrado.
O cartola pensa em como sairá do estádio – coisa difícil, pois os torcedores, esparramados pelo gramado, já o reconheceram. Espanta-se com a raiva daqueles homens humildes, de usual pacatos e respeitadores da ordem das coisas, os quais sempre buscou agradar, de todas as maneiras.
Vem à mente o goleiro fujão e aperta os dentes. Deveria ter desconfiado de tanta facilidade. Esquiva-se de uma latinha cheia de urina; sente-se injustiçado. Mas afasta a filosofia da cabeça – precisa fugir. Tenta lembrar se teria entrado, mesmo, com o pé esquerdo em campo.
Corre para perto do destacamento da polícia, com expressão de alívio – que não quer conversa com ele, atrás de escudos de acrílico, ao abrigo dos rojões, pedras e paus, protegendo o juiz e um bandeirinha, estropiados.
Reconhece no meio da turba um dos jornalistas que o esculhambava pouco antes do jogo, de joelhos, tomado de pavor, pedindo misericórdia aos destemperados que o cercam. Inútil. Compaixão é costume em desuso nos tempos atuais.
A turba alcança o cartola, firme em sua missão de erradicar o mal daquele campo.