Por Ivan Schmidt
Descrito pelo jornal El País na edição do último dia 22, como “um estudo monumental”, o livro escrito pelo pesquisador francês Christian Ingrao, especialista em temas de guerra e nazismo,Crer e destruir – Os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista (Zahar, RJ, 2015), com a escorreita tradução de André Telles, certamente preencheu embora com atraso, uma carência do estudioso não apenas no Brasil (o original foi publicado por editora parisiense em 2010), há muito tempo interessado em obter respostas convincentes sobre a essência propriamente dita da ideologia nazista.
O jornalista Jacinto Antón, escrevendo de Barcelona, abriu sua apreciação sobre a obra em foco ressaltando que “a imagem que se tem popularmente de um oficial da SS é a de um indivíduo cruel, chegando ao sadismo, corrupto, cínico, arrogante, oportunista e não muito culto”.
Aliás, esse protótipo foi esculpido objetivamente e com reiterada insistência pelo cinema norte-americano a fim de retratar o caráter dos autômatos fardados que obedeciam cegamente as ordens ditadas pelo supremo comandante Adolf Hitler.
A visão fornecida, entretanto, pelo historiador Christian Ingrao traça um perfil bastante diverso e não menos inquietante, na medida em que identifica “uma alta porcentagem dos comandantes da SS e de seu serviço de segurança, o temido SD, como verdadeiros intelectuais comprometidos”.
Antón lembra que o trabalho do pesquisador “escandalizou o mundo intelectual francês”, ao revelar que “esses eram os homens que lideravam as unidades de extermínio”. A revelação foi feita com base em minuciosa análise da trajetória e experiências “de oitenta desses indivíduos que eram acadêmicos – juristas, economistas, filólogos, filósofos e historiadores — e ao mesmo tempo criminosos, derrubando o senso comum que quanto maior o grau de instrução mais uma pessoa estará imune a ideologias extremistas”.
Atual diretor do Institut d’Histoire du Temps Présent (Paris), entre outras descobertas que apresenta num livro de quase 500 páginas, Christian cita o caso do jurista e oficial da SD – Bruno Müller – à frente de uma das seções do Einsatzgruppe D, uma das unidades móveis de assassinatos no Leste, “que na noite de 6 de agosto de 1941, ao transmitir a seus homens a nova ordem de exterminar todos os judeus da cidade de Tighina, na Ucrânia, mandou trazer uma mulher e seu bebê, e os matou ele mesmo com sua arma para dar o exemplo de qual seria a tarefa”.
O historiador diz que “é curioso que Müller e outros como ele, com alto grau de instrução, pudessem se envolver assim na prática genocida”, ao confirmar que o nazismo “é um sistema de crenças que gera muito fervor, que cristaliza esperanças e que funciona como uma droga cultural na psique dos intelectuais”.
Egressos das principais universidades alemãs e escrupulosamente recrutados pelo Terceiro Reich, quase todos com títulos de doutorado, esses indivíduos carregavam as marcas da Primeira Guerra Mundial, e embora a grande maioria fosse muito jovem para o front, ostentava o luto pela morte generalizada de familiares, alimentando a nítida sensação de que se travava um combate em defesa da sobrevivência da Alemanha – da civilização contra a barbárie.
Com a invasão da União Soviética em 1941, aponta Ingrao, cresceu entre os intelectuais do Reich o significado de uma guerra total ainda mais radicalizada pelo determinismo racial. “O que até então havia sido uma guerra de vingança, a partir de 1941 se transformou numa guerra racial, e uma cruzada”, diz o jornalista Jacinto Antón ao lembrar a conclusão de Ingrao de que sempre há intelectuais por trás dos assassinatos em massa, em especial, os representantes da geração por ele estudada que “experimentou em sua juventude a radicalização política para a extrema direita com forte ênfase no imaginário biológico e racial que se produziu maciçamente nas universidades alemãs depois da Primeira Guerra Mundial. E aderiram de maneira generalizada ao nazismo a partir de 1925”.
Antón acrescenta que a SS, ao contrário da ruidosa SA, foi o caminho natural dos intelectuais em busca de um destino mais elitizado.
A força que moveu esses homens cultos foi o embate decisivo contra o eterno inimigo então representado por duas faces, a do judeu bolchevique e a do judeu plutocrata das bolsas de Londres e Wal Street: “Para os intelectuais da SS, não havia diferença entre a população civil judia que exterminavam à frente dos Einsatzgruppen e os tripulantes dos bombardeiros que lançavam suas bombas sobre a Alemanha. Em sua lógica, parar os bombardeiros implicava em matar os judeus da Ucrânia. Se não o fizessem, seria o fim da Alemanha. Esse imperativo construiu a legitimidade do genocídio. Era ou eles ou nós”.
Assim se explicam casos como o de Müller, argumenta Christian Ingrao no massacrante relato de Crer e destruir, um livro de leitura penosa, mas extremamente necessário e lúcido no propósito de esclarecer uma das piores tragédias do século 20, o ódio racial de uma nação contra outras.
Defensores da ideia da criação de uma utopia, os “teóricos da germanização” no dizer do autor da investigação social, esses homens trabalhavam para “criar uma nova sociedade”, sendo que o “assassinato era uma de suas responsabilidades para criar a utopia. Curiosamente era preciso matar os judeus para realizar os sonhos nazistas”.
Ao contrário do que se pensou durante muito tempo no pós-guerra e mesmo na atualidade, em que pese a incalculável quantidade de livros e teses escritos sobre o tema controvertido, Ingrao lança uma luz radiante sobre a verdade incômoda de que os intelectuais nazistas não eram oportunistas em busca de reconhecimento e recompensa por sua dedicação aos estudos superiores e bagagem cultural, mas pessoas ideologicamente muito comprometidas, ativistas com uma visão de mundo que aliava entusiasmo, angústia e pânico e, que, paradoxalmente, abominavam a crueldade: “A SS era um assunto de militantes. Pessoas muito convictas do que diziam e faziam, e muito preparadas”, síntese que torna ainda mais horrenda a face da banalidade do mal desencadeada na Europa sob o domínio da suástica: “É preciso aceitar a ideia de que o nazismo era atraente e que atraiu como moscas as elites intelectuais do país”.