Sentou no elevador e olhou para onde se refletiam as luzes nas paredes do trambolho em que se encontrava dentro. Eram luzes cruzadas, formando harmonicamente mandalas que se esqueceram de se completar. Lembrou-se do início do dia. Acordou como se não se lembrasse do que havia sonhado, mas teve a sensação de que não era algo a se considerar. Deixou de lado suas aflições para consagrar aquele dia como o batismo de sua alma. Almoçou o que poderia haver de alimento, sem reclamar, sem se esmerar em coisas impossíveis (ou só possíveis para os que jogaram a alma na lama). Seria ela muito autocrítica? Não sabia mensurar os limites de seus pensamentos, pois assim poderia refletir o que não se poderia decifrar. No caminho para casa, deu a volta como as mangueiras que jorram água desperdiçada em calçadas para a limpeza de algo ainda incrustado nas veias. Poeira que não sai nem mesmo em pensamento. E os desejos, como situá-los em tantos círculos sem fim? Aqueles que não levam a nada. Por isso, resolveu escutar a sábia voz que ressoa sutilmente no espaço entre um passo a se dar em falso e a súbita parada para que outras vidas possam passar. Na vida. Foi embora sem deixar vestígios. A sua sagrada vingança estaria nisso. Como se não soubesse que a vida continua mesmo antes de a gente parar de vez. Viu flores alaranjadas, cachorros gentis e dóceis, senhores com calçados violetas, grupos unidos, sogras desavisadas do perigo iminente da solidão de seus filhos, crianças descabeladas, sorrisos que se perdem em um momento de distração, meias-arrastão em pernas tortas, gente hipnotizada pelos pelos arrepiados, a beleza que rouba-lhe a paz e a faz seguir em frente. Ela até gostaria de mentir para si mesma e sair pelas ruas sem medo de perder a sagrada oportunidade de viver mais um dia sem se preocupar com seus defeitos, seus erros, suas culpas. Mas ela mantém isso como um troféu para que não pereça ante a malícia alheia. Apenas expõe claramente seu desejo de voltar a ser criança, pois sabe que o mundo dança em uma sinfonia que ainda não soube escutar. Confia apenas nos sinais que a vida lhe dá. E assim ela segue. Ou se cega.