Da Folha de S.Paulo
por Antonio Augusto Passos Videira e Cássio Leite Vieira
Há 70 anos, a descoberta de uma nova partícula subatômica causou sensação na comunidade internacional e esteve por trás do gesto contido do jovem na foto estampada na lateral desta página. A imagem simboliza um período em que ciência, alavancada por ideais desenvolvimentistas e ligados à segurança nacional, integrou um projeto de nação para o Brasil.
Então com 24 anos de idade, Cesare Mansueto Giulio Lattes (1924-2005) foi recepcionado pela imprensa ao voltar ao país no auge de sua fama, alcançada por feitos na Inglaterra e nos EUA.
Único físico formado na turma de 1943 da USP, aquele curitibano com planos de ser professor secundário havia ido muito mais longe do que previra. César Lattes se tornava “nosso herói da era nuclear”.
A revista “Nature” de 24 de maio de 1947, em poucas páginas, detalhava a detecção de um novo fragmento de matéria: a partícula méson pi (hoje, píon), responsável por manter prótons e nêutrons “colados” no núcleo atômico.
O feito era do laboratório H. H. Wills, da Universidade de Bristol, onde Lattes havia chegado no início de 1946 a convite de Giuseppe Occhialini (1907-1993), que fora seu professor na USP, e Cecil Powell (1903-1969), chefe do grupo.
A equipe de Bristol usava placas fotográficas especiais para capturar a trajetória e a desintegração de partículas subatômicas. Quando Lattes se instalou na universidade britânica, o material havia passado por melhorias técnicas e estava em fase de calibração.
Lattes pôde pôr em prática um plano que havia traçado ainda no Brasil. Ele queria usar as chapas para estudar os raios cósmicos, núcleos atômicos que, a todo instante, penetram a Terra e, chocando-se com moléculas da atmosfera, geram uma chuveirada de partículas.
A esperança dos físicos era a de que um desses nacos de matéria fosse uma partícula ainda desconhecida. Para melhorar as chances dessa “captura”, as chapas eram expostas em montanhas. No final de 1946, Lattes pediu a Occhialini que deixasse algumas caixas delas no Pic du Midi, nos Pirineus franceses (2.500 m de altitude).
Parte dessas placas tinha algo novo. Lattes havia pedido ao fabricante que incluísse, na sua composição, o elemento químico boro. Essa inovação tornou mais fácil visualizar as trajetórias dos dois mésons pi que ilustraram o artigo da “Nature” há 70 anos.
Entusiasmado, Lattes apostou que, no monte Chacaltaya, na Bolívia, com o dobro da altura do Pic du Midi, ele poderia capturar mais mésons pi. O laboratório H. H. Wills pagou a passagem até o Rio de Janeiro e, de lá, o brasileiro se viraria para chegar ao seu destino. Montanhas, neve, cavernas, fundos de lago etc. Física experimental tinha algo de aventura à época.
Do pico andino, Lattes trouxe centenas de mésons. Os resultados foram publicados em outubro de 1947 na “Nature”, revelando mais detalhes sobre as partículas.
CALIFÓRNIA
Ao final daquele ano, o H. H. Wills ganhava ares de meca da técnica fotográfica aplicada à física. As notícias da detecção do méson pi espalharam-se. Do norte da Europa, veio o convite para Lattes dar palestras.
Em Copenhague, o jovem brasileiro encontrou-se com Niels Bohr (1885-1962), Nobel de Física de 1922. O dinamarquês ficou surpreso ao saber que Lattes pretendia deixar Bristol e seguir para os EUA. Sua missão seria detectar mésons no então mais potente acelerador de partículas do mundo, o sincrociclótron de 184 polegadas, na Universidade da Califórnia (Berkeley).
Essa máquina, que começara a funcionar havia mais de um ano, tinha o propósito de produzir mésons. Mas, para constrangimento geral, as partículas ainda não haviam sido detectadas.
Lattes chegou no início de 1948 e, dez dias depois, com a ajuda do colega norte-americano Eugene Gardner (1913-1950), visualizou os mésons nas chapas fotográficas expostas ao feixe de partículas gerado por aquele equipamento.
Pela primeira vez, partículas detectadas apenas na radiação cósmica haviam sido produzidas artificialmente. Além disso, a visualização dos mésons pi por Lattes e Gardner mostrava que um avanço técnico implementado naquele sincrociclótron funcionava.
Estavam lançadas, assim, as sementes para uma nova forma de fazer física: a era das máquinas, que transformaria os EUA no centro mundial desse ramo pelo próximo meio século.
A produção artificial do méson pi foi capa da revista “Science News Times”, ocupou páginas de duas edições da revista “Time”, mereceu entrevista coletiva com cobertura da “Nucleonics” e rendeu reportagens no jornal “The New York Times”, cuja editoria de ciência elegeu aquele o feito mais importante da física no ano, comparando-o à fissão do núcleo atômico.
No Brasil, os feitos de Lattes também tiveram ampla repercussão. Jornais, revistas e suplementos começaram a moldar “nosso herói da era nuclear”. O curitibano era o representante brasileiro de uma nova ordem mundial, na qual conhecimento tornava-se sinônimo de poder (político e econômico).
No mundo, naquele momento, nascia a aliança entre ciência, tecnologia, capital e Estado. Eram as raízes do complexo militar-tecnológico dos EUA.
DESENVOLVIMENTISMO
O Brasil reagiu a esse novo cenário mundial. Cevada por uma mentalidade desenvolvimentista, uma campanha reuniu formadores de opinião de vários setores.
Pleiteava-se a criação de um instituto no qual se fizesse, em período integral, pesquisa em física. Por sua parte, militares nacionalistas viram ali a chance de obter o ciclo completo da energia nuclear –ainda hoje de extrema importância.
O sucesso do movimento rendeu frutos em 1949, quando foi fundado o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Lattes era seu diretor científico.
Nos anos seguintes, essa primeira aliança entre físicos e militares criou dois projetos distintos.
O primeiro, de um “Brasil grande”, capitaneado pelo físico-químico e almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva (1889-1976), tinha como frente principal a construção de um acelerador mais potente que o de Berkeley. No outro, o do “Brasil realista”, defendido por Lattes, propunha-se algo mais modesto: um acelerador de pequeno porte, para treinamento de estudantes.
O acelerador do almirante Álvaro Alberto naufragou fragorosamente. O país nem tinha os equipamentos necessários para a usinagem dos ímãs gigantescos usados nessas máquinas.
O cenário “Brasil grande”, contudo, evaporou mesmo por causa de um escândalo. O diretor financeiro do CBPF gastou a verba do acelerador em corridas de cavalo.
Embora desaconselhado por colegas, Lattes foi à mídia, e o jornalista Carlos Lacerda (1914-1977) usou a história para atacar o governo de Getúlio Vargas, seu rival. Lacerda publicou na capa de seu jornal, “Tribuna da Imprensa”, uma carta de Lattes.
Aos 30 anos, devido às pressões, Lattes teve um surto psiquiátrico. Viajou para os EUA em busca de tratamento. Regressou ao Brasil em 1957, talvez para tentar finalizar o que havia construído.
Crise no CBPF, salários baixos, inflação, família numerosa e quadro mental instável. Esses fatores levaram o físico de volta à USP, em 1959, onde seguiu com projetos experimentais envolvendo o uso das placas fotográficas e o estudo dos raios cósmicos.
Em 1967, Lattes transferiu-se para a então recém-inaugurada Universidade Estadual de Campinas (SP), na qual se aposentaria.
Para o Brasil, o méson foi muito mais do que uma partícula, e Lattes, muito mais do que ele mesmo. Seus feitos impulsionaram a construção da estrutura político-administrativa de ciência no país.
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) são frutos de um projeto que alçou um cientista a herói nacional, de um país que percebeu que conhecimento era a ordem do dia para uma nova geopolítica.
Até a década de 1920, praticamente tudo o que havia de física experimental no Brasil era um laboratório didático na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.
Lattes elevou o campo de estudos a novos patamares. Na década de 1950, construiu, em Chacaltaya, um laboratório para estudar radiação cósmica. Nesse mesmo período, a Europa, recuperando-se da Segunda Guerra, erguia seu centro de pesquisas nucleares. Aquele era um Brasil –ao menos em ciência– protagonista da história.
As trajetórias de partículas na forma de risquinhos pontilhados que aparecem no artigo de maio de 1947 mudaram a ciência brasileira. E essa, nas décadas seguintes, mudaria a cara do país.
Lattes poderia ter feito carreira no exterior, mas optou por seu país. “Prefiro ajudar a construir a ciência no Brasil do que ganhar um Nobel”, escreveu, na década de 1940, ao colega físico José Leite Lopes (1918-2006).
Não era bravata. Em 1949, o japonês Hideki Yukawa (1907-1981) ganhou o Prêmio Nobel de Física pela previsão teórica dos mésons. Um ano depois, Cecil Powell foi laureado pelo desenvolvimento do método fotográfico que permitiu as descobertas sobre os mésons. Lattes recebeu sete indicações ao prêmio.
Passados 70 anos, o nome “Lattes” e o termo “méson pi” ainda ressoam. O cientista recebeu várias homenagens (títulos, prêmios, nomes de rua). A faceta mais famosa é a plataforma acadêmica de currículos. São ecos benignos de um país que havia feito da ciência uma prioridade. Com um pouco de esforço, será possível não só capturar aquela mensagem, mas amplificá-la e recolocá-la em prática.
ANTONIO AUGUSTO PASSOS VIDEIRA, 53, é professor do departamento de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, colaborador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e pesquisador do CNPq.
CÁSSIO LEITE VIEIRA, 56, trabalha na revista “Ciência Hoje” e no Núcleo de Comunicação Social do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.