Ao escrever sobre o possível desaparecimento dos restos mortais de Garrincha, seu biógrafo, o escritor e jornalista Ruy Castro, informa que ele foi internado 18 vezes em clínicas psiquiátricas. “Todos queriam salvá-lo, mas de nada adiantou. Garrincha foi vítima da brutal ignorância brasileira sobre o alcoolismo”, escreveu. Castro fala por experiência própria, pois é um alcoólatra em recuperação há quase 30 anos e um mestre também ao dar palestras e escrever sobre o assunto. O signatário faz parte do mesmo time. Parei de beber há 27 anos, substituí o álcool pela cocaína e, só por hoje, vivo em sobriedade há quase 23 anos, depois de três internamentos. Rui Castro foi internado, queria fugir da clínica e sua ficha caiu quando descobriu que seu “poder superior” era a própria mente. “Poder superior” não tem nada a ver com religião ou algo parecido – é a força que a pessoa descobre e que pode vir de uma palavra, de olhar a natureza, de um gesto, etc. Foi o escritor mesmo relatou isso recentemente em entrevista para a televisão. Depois do internamento, foi para casa e não parou mais de escrever. Seu talento nato explodiu em forma de livros e mais livros, ele que já era um grande jornalista, mesmo que atrapalhado pelo álcool. Tudo isso aí em cima só para ficar no ponto sobre a ignorância a respeito desta doença chamada dependência e que está na ordem do dia por conta dos acontecimentos recentes ocorridos na cracolândia de São Paulo. Perdi mais amigos por causa do alcoolismo do que por outras drogas. Muitos se internaram, mas não conseguiram retomar o controle da própria vida. Acontece. Clínica, como já escrevi em artigo para a Gazeta do Povo, não é tenda de milagres – mas é uma tentativa mais do que válida para que o doente tenha uma chance de se olhar, afinal, primeiro ele para de se drogar e, assim, pode descobrir que é possível sobreviver sem qualquer tipo de substância que atue no sistema nervoso central. A maioria das pessoas não sabe o que é um tratamento, seja em instituições particulares ou naquelas onde pode se internar pelo SUS, quando há vagas. Estive nas duas. O que se faz ali dentro, basicamente, é terapia. E o que é isso? Em resumo simples: um caminho para o autoconhecimento, já que quem vive no universo paralelo das drogas tenta buscar algo que alivie dor da alma ou que lhe coloque no “algo mais” da vida normal que não tem muito sentido para ele. A quantidade de absurdos publicados a partir do que aconteceu na cracolândia paulista mostra o quanto os “sabe tudo”, titulares de colunas, etc, desconhecem o problema – tanto quanto aqueles que expulsam alcoólatras ou drogados de casa porque acham que são vagabundos imprestáveis e que não têm “força de vontade” para largar o vício. Gente que escreve “ex-dependentes”, sobre a “cura da doença”, etc. Não há cura, não existe ex, mas sim dependentes em recuperação. Casos de recaídas depois de anos de sobriedade provam isso. Exemplo? O pai do signatário, que passou 20 anos sem beber e retornou do ponto onde estava antes. Aprender isso é uma forma de se prevenir no dia-a-dia. A lorota de que os que fumam crack não têm jeito pode ser desmentida em qualquer clínica onde há voluntários, ou seja, pacientes que tiveram alta médica. Onde cumpro esta missão, que também faz parte do meu tratamento, que é até o fim dos meus dias, tenho amigos que eram usuários desta droga e estão bem há mais de dez anos. A discussão sobre internação voluntária desencadeou uma enxurrada de desinformação a partir da ação absurda do prefeito marqueteiro de São Paulo, aquele que jogou a polícia em cima de noiados com a ideia embalada no slogan de que “a cracolândia acabou!” Antecessores fizeram coisas parecidas, chegando-se ao absurdo de uma ação onde dava-se dinheiro para dependente. Agora, depois da besteira, surgiu a ideia de se internar compulsoriamente os craquelentos. A primeira pergunta que acaba com essa nova ação marqueteira é: internar onde, se a política pública nessa área no Brasil é de uma incompetência pior do que em outras áreas? O problema paulistano então virou uma discussão entre a prefeitura, a Justiça e o Ministério Público, enquanto os usuários se espalharam na cidade fumando seus cachimbinhos. Quando me perguntam, nas palestras que faço, se sou a favor do internamento involuntário, respondo de forma radical. Cito o caso dos pacientes que reclamam que foram internados pelos pais ou parentes dessa forma. Para estes, eu digo: estavam vendo você morrer e fizeram um gesto de amor para salvar sua vida. Portanto, nestes casos individuais, dentro das famílias, digo que um caminho para o dependente, que normalmente se recusa ao internamento, é amarrá-lo e internar. Já vi casos de agressão a parente que internou paciente e este partiu para a violência na primeira visita. Depois, recuperado, o doente agradeceu o irmão, se tornou voluntário e sempre contou essa passagem aos que estavam internados. O médico Drauzio Varella, dos poucos com conhecimento de causa no assunto, disse que no caso da cracolândia o internamento compulsório, que a imprensa anabolizou classificando de “à força”, seria a última alternativa. Sim, mas aqueles trapos humanos estão nela. O prefeito candidato à presidência da República disse que eles estão “possuídos pelo vício”. Deve ter recebido a sugestão de algum publicitário da equipe dele. A dependência de qualquer coisa leva a pessoa a viver em um mundo à parte. Como fazer para resolver o problema de uma multidão como aquela é caso de vontade política e de se chamar os verdadeiros especialistas no assunto, ou seja, psiquiatras e psicólogos que lidam com a doença, para se achar uma solução. Que tal estudar o que se fez nos Estados Unidos que vivenciou a epidemia do crack nos anos 80? Palpiteiros e ignorância generalizada não faltam. Estes só atrapalham – e aqueles que fazem parte do meu time e do Ruy Castro continuam morrendo – quando não matando por aí como acontece muito no caso do alcoolismo.
Nessa guerra entre a liberdade individual (de se drogar, de o paciente terminal desligar aparelhos, de os pais não vacinarem os filhos etc.) e o direito à vida, que vença o amor. Submeter um amigo ou parente a um tratamento que possa levá-lo à desintoxicação, podendo até ajudá-lo a recuperar a auto-estima, é um ato de amor. Submeter um paciente terminal a um tratamento paliativo em nome da ética médica ou por apelos religiosos já não sei se é. E se, por apelos filosóficos, ideológicos ou pseudo-científicos deixamos de vacinar nossos filhos, expondo-os a doenças quase extintas? Amor não há de ser.
Zé, estou compartilhando em meus grupos.
Fico estarrecido com essas tentativas de enquadrar o problema e seus malogros repentinos para sabe lá quando encetarem outra medida. É como fuçar num formigueiro só para causar celeuma e pouco efeito para os desvalidos da droga. É mais estarrecedor ainda verificar q os traficantes continuam fornecendo drogas como se nada tivesse acontecido somente uma perturbação momentânea.
Imagina se alguém profundamente doente ( dependente químico) tem condições de decidir sobre ser internado? Perdeu prá droga a decisão sobre sua vida. Tem que ser compulsório este internamento.