Por Ivan Schmidt
O romancista peruano Mario Vagas Llosa (O sonho do celta e outros) escreve quinzenalmente, aos domingos, um ensaio publicado e distribuído pelo diário espanhol El País, no qual além das profundas análises sobre a literatura contemporânea, discorre também sobre artes, cultura, comportamento e… política. E, em nenhuma dessas áreas de interesse humano o beletrista, no melhor dos sentidos da expressão, deixa a desejar, o que é privilégio de poucos.
No domingo passado (7), segundo turno da eleição presidencial na França, ao escrever sobre Emmanuel Macron – eleito presidente com folgada vantagem sobre Marine Le Pen, Llosa comentava com base na totalidade das pesquisas de opinião pública que a vitória do candidato jejuno em política e praticamente desconhecido “salvará a França do que teria sido uma das piores catástrofes de sua história”.
E explicava tamanho pessimismo ao acrescentar que a vitória da Frente Nacional, partido de extrema direita de Le Pen “não significaria apenas a ascensão ao poder de um grande país europeu de um movimento de origem inequivocamente fascista, mas a saída da França do euro, a morte da União Europeia no curto prazo, o ressurgimento dos nacionalismos destrutivos e, em última instância, a supremacia no velho continente da renascida Rússia imperial sob o comando de Vladimir Putin, o novo czar”.
Considerando um milagre da França atual, Llosa vê na eleição de Macron, um sólido patamar sobre o qual se possa reconstruir “a corrente universalista e libertária, a de Voltaire, e de Tocqueville, a de parte da Revolução Francesa, a dos Direitos do Homem, a de Raymond Aron”, hoje, em sua maneira de entender, “tremendamente debilitada pela ressurreição da outra, a tradicionalista e reacionária, a nacionalista e conservadora – da qual o governo de Vichy foi genuíno representante, e a Frente Nacional é emblema e porta-estandarte – que abomina a globalização, os mercados mundiais, a sociedade aberta e sem fronteiras, a grande revolução empresarial e tecnológica do nosso tempo”.
Esse descalabro institucional, político e administrativo, enfim, uma negação repudiada pelo pensador peruano há décadas radicado na Europa, e por pessoas de mente aberta em todos os países do mundo, diz ele, “gostaria de fazer a cronologia retroceder e voltar à poderosa e imarcescível França da grandeur, uma ilusão à qual a contagiante vontade e a sedutora retórica do general De Gaulle deram vida fugaz”.
Vargas Llosa não comete a mínima leviandade ou falta de respeito ao historicismo ao sustentar que “a verdade é que a França não se modernizou, e o Estado continua a ser um obstáculo esmagador para o progresso, com seu intervencionismo paralisante na vida econômica, sua burocracia ancilosada, sua tributação asfixiante e o empobrecimento dos serviços sociais”.
Para nós, brasileiros, a análise certeira como uma lança ianomâmi ao espetar o dorso de um pirarucu, é uma carapuça à qual nos curvamos envergonhados, tal é a similitude entre os vícios que ao longo do tempo manietaram costumes e práticas políticas tanto na Franca quanto no Brasil.
Ao constatar o empobrecimento dos serviços sociais, como se estivesse a compulsar dados que tornam igualmente lamentável o cenário tupiniquim, Vargas teve a fidalguia de admitir que os mesmos são “em teoria extraordinariamente generosos, mas, na prática, cada vez menos eficientes pela impossibilidade crescente em que se encontra o país de financiá-los”.
Basta um olhar relâmpago sobre a situação dos serviços de saúde pública, segurança e educação básica – apenas isso – para termos o retrato fiel das deficiências administrativas do país e dos gastos equivocados do dinheiro público (nessa quarta-feira o total da arrecadação chegou a R$ 800 bilhões), cujo montante, prezado leitor, foi construído com os rendimentos do trabalho de milhões de patrícios de janeiro até agora!
Entretanto, vem o governo e diz que não dispõe de recursos suficientes para dar atendimento digno aos doentes que recorrem ao SUS, para reduzir a estatística de crimes hediondos e educar melhor nossas crianças, adolescentes e jovens.
Voltando às assimetrias gaulesas, Vargas Llosa enfatiza que Macron, ao longo da campanha, disse “com uma clareza quase suicida, sem ter cedido em momento algum a concessões populistas”, que vai mudar tudo. E para isso precisa de reformas (de novo a comparação com o Brasil) que “tirem a França de sua inércia histórica e a transformem em um país moderno, em uma democracia operacional e, como já é a Alemanha, na outra locomotiva da União Europeia”.
Para o autor de Guerra do fim do mundo, uma das mais impressivas narrativas sobre a epopeia vivida por Antonio Conselheiro nos sertões da Bahia, o liberalismo de Emmanuel Macron mostra que o novo presidente francês (assume nesse domingo) é um “genuíno revolucionário”.
E essa revolução na França dos nossos dias (e no Brasil também) “é devolver à empresa privada sua função de ferramenta principal da geração de emprego e motor do desenvolvimento, é reconhecer no empresário, acima das caricaturas ideológicas que o ridicularizam e vilipendiam, sua condição de pioneiro da modernidade, e lhe facilitar a tarefa enxugando o Estado e concentrando-o no que de fato lhe diz respeito – a administração da justiça, a segurança e a ordem pública – permitindo que a sociedade civil compita e atue na conquista do bem-estar e da solução dos desafios econômicos e sociais”.
Queira Deus que o ensaio de Vargas Llosa esteja colocado na pasta de leituras obrigatórias dos presidentes e principais assessores dos poderes constituídos, para que se comece como preconizou o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Aires Brito, ao estrear como comentarista do Jornal da Cultura, transmitido aqui pela É Paraná, um grande entendimento nacional em torno da reconquista de padrões morais e éticos capazes de transformar o Brasil numa verdadeira pátria.
Llosa concluiu louvando os séculos de inteligência e audácia das elites intelectuais e científicas francesas que “encabeçaram o avanço do progresso não só no mundo do pensamento e das artes, mas também no da ciência e da técnica, e por isso fez avançar a cultura da liberdade a passos de gigante”.
Entretanto, segue o pensador, dormindo sobre esses louros e vivendo a nostalgia do velho esplendor “a França se foi aproximando ao longo de todos esses anos de um inquietante abismo no qual o nacionalismo e o populismo estão a ponto de precipitá-la”.
“Macron poderia começar a recuperação”, clama o romancista distinguido com o Prêmio Nobel de Literatura em 2010. O presidente Michel Temer idem, digo eu.