8:11Cantando de olhos fechados

por Ruy Castro

Ella Fitzgerald (1917-1996), que teria completado 100 anos na segunda-feira (24), deixou em aberto uma pergunta que talvez não comporte resposta: era uma cantora de jazz ou uma cantora popular? A dúvida surge quando a comparamos com a outra cantora sobre a qual parece não restar dúvida: Billie Holiday (1915-1959). Mas por quais critérios Billie seria uma cantora de jazz e Ella, talvez não?

Quando as duas começaram (Billie, em 1933; Ella, em 1935), ambas com 18 anos, ninguém sabia direito o que era “cantar jazz”. Pouco antes, em 1927, o branco Al Jolson, de cara pintada, estrelara o primeiro filme sonoro, “O Cantor de Jazz”. Ninguém protestara —e, pelas liberdades que ele tomava ao cantar, talvez fosse mesmo. Era uma época difusa, em que negros (Bessie Smith, Ethel Waters, Louis Armstrong) e brancos (Bing Crosby, Mildred Bailey, Connee Boswell), em doses iguais, estavam inventando um novo jeito de cantar.

O “scat singing” —a improvisação vocal sem palavras—, por exemplo, era “cantar jazz”. Mas Billie não o usava. Isso a tornava menos jazzística? Não, porque, à sua maneira, nunca cantou uma canção do jeito que ela foi escrita. Ella, por sua vez, seria a rainha do “scat” e levaria essa técnica às últimas consequências. Mas, quando foi chamada a cantar Cole Porter, seguiu a partitura nota por nota.

Billie gravou com cordas, o que seus fãs viram como anátema. Pouco depois, Ella fez o mesmo. As duas se cercavam dos grandes jazzistas, mas sonhavam com a parada de sucessos. Billie namorou os clarinetistas Benny Goodman e Artie Shaw e o pianista Jimmy Rowles, todos brancos. Ella não namorou ninguém.

Fisicamente, Ella lembrava um contrabaixo. Mas, ao cantar, soava como um violino. Cantava de olhos fechados, como se quisesse que a plateia enxergasse apenas a sua voz.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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