Editorial da Gazeta do Povo
Apesar das mudanças, o texto segue feito sob medida para retaliar o trabalho se policiais, procuradores e juízes na Lava Jato
A determinação de frear a Operação Lava Jato – o tal “acordo nacional para estancar a sangria” de que falavam o senador Romero Jucá e o ex-diretor da Transpetro Sérgio Machado – ficou escancarada no Senado nesta quarta-feira, quando o projeto de lei sobre abuso de autoridade, relatado pelo paranaense Roberto Requião, teve sua tramitação acelerada, sendo aprovado tanto na Comissão de Constituição e Justiça quanto no plenário da casa legislativa. Os 54 votos recebidos no plenário, contra 19 contrários, além da unanimidade na CCJ, evidenciam a “ação suprapartidária” elogiada pelo senador Jorge Viana (PT-AC) durante a votação do texto.
Requião bravateou o quanto quis ao responder às críticas ao projeto, mas, na hora decisiva, fez novas alterações no texto apresentado à CCJ para apreciação na quarta-feira. Acertou quando mudou o parágrafo 2.º do artigo 1.º. O texto anterior dizia que “A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, necessariamente razoável e fundamentada, não configura, por si só, abuso de autoridade” – o pulo do gato estava justamente na expressão “necessariamente razoável e fundamentada”, que dava margem para o surgimento do “crime de hermenêutica”. O novo texto removeu essas palavras.
Mas permanece no texto a possibilidade de réus e investigados abrirem processo contra promotores, procuradores e juízes. A única diferença é o estabelecimento de algumas condições para tal – por exemplo, se o Ministério Público não oferecer a denúncia dentro de seis meses. Como investigações e processos costumam se arrastar por mais tempo, ainda está aberta a brecha para a abertura de processos que, na prática, servem como represálias contra agentes públicos empenhados no combate à corrupção.
Além disso, todas as outras definições de crime de abuso de autoridade feitas de forma deliberadamente vaga continuaram no projeto. O truque está em misturar atitudes que efetivamente constituem abuso de autoridade, e que precisam ser coibidas, com outras que fazem parte do arcabouço que procuradores e juízes têm à disposição para realizar seu trabalho, como a condução coercitiva. Ou seja, nas palavras do senador Cristovam Buarque (PPS-DF), as mudanças apenas “despioraram” o projeto, que continua a manter um desenho feito sob medida para retaliar o trabalho de policiais, procuradores e juízes na Lava Jato, como ressaltou o procurador Deltan Dallagnol em entrevista à Gazeta do Povo, feita após a aprovação do texto na CCJ.
O projeto ainda tem de passar pela Câmara dos Deputados, que também conta com sua “bancada da Lava Jato”, composta por políticos sob investigação e que adorariam dar o troco naqueles que os investigam e julgam. Por isso, é mais provável que a tarefa de impedir que os dispositivos problemáticos se cristalizem na legislação caiba ao presidente Michel Temer, que tem de sancionar o texto em caso de aprovação na Câmara, e especialmente ao Supremo Tribunal Federal, que inevitavelmente será provocado a respeito da constitucionalidade da lei. Na quarta-feira, o ministro Luís Roberto Barroso negou pedido de liminar para suspender a tramitação do projeto, alegando não haver problemas no procedimento; mas será diferente quando o Judiciário tiver de analisar o conteúdo do texto.