por Fernando Muniz
Domingo cedo, dia de sol e brisa suaves. Família no hotel-fazenda, feliz junto aos amigos, em paz e tranquilidade. O garotinho não poderia pedir outra coisa; a mãe, sentada tranquila na varanda, admirava a criançada jogar bola. O pai e um amigo resolveram passear de bicicleta, por uma estrada estreita e sinuosa.
Liberdade, ar puro, pássaros. Logo após o portão do hotel pegaram embalo em uma descida. Vento no rosto, alegria por estarem ali.
Um carro popular seguia pela estradinha, no rumo de casa. Amigos voltavam do futebol, felizes por terem vencido o campeonato. Ao dobrarem uma curva no pé do morro o impacto foi frontal. Os ciclistas voaram sobre o capô e acertaram o chão dali a uns trinta metros. Um dos passageiros, cuspido para o mato assim que o carro caiu numa valeta, levantou-se todo esfolado, sem acreditar nos restos do que haviam sido bicicletas, nem no que os ciclistas se tornaram.
Outros três rapazes, com seus uniformes de futebol de várzea, saíram do carro pelas janelas. “Me ajudem, pelo amor de deus!”, um dos ciclistas exclamou, agonizante. Os rapazes examinaram o carro, a bicicleta e os corpos. E puseram-se a correr.
Três dias depois, em uma delegacia da região, um defensor público dirige-se ao acusado, de modo protocolar. “Estou aqui para representar seus interesses”, enquanto inspeciona o provável cliente. Que está um tanto ressabiado após horas sem fim de interrogatórios, tapas no ouvido e chutes no saco. O rapaz mantém os olhos grudados ao chão, coalhado de sujeira.
“Você sabe do que está sendo acusado?”. O defensor não se intimida com o silêncio. “Mas eu não chamei o senhor aqui”. A resposta vem de solsaio; a dor nas costelas começa a ficar insuportável. “Você tem algum advogado?”. O rapaz dá de ombros. “Não tenho dinheiro”.
O defensor senta-se no banco do parlatório da carceragem, meio bambo, abre a pasta e puxa alguns documentos. “Veja só, as acusações são graves. Homicídio e omissão de socorro. Além de o exame de sangue indicar que vocês beberam além da conta. Por outro lado, os teus companheiros ainda não disseram nada”.
O rapaz coça a cabeça. Apalpa o supercílio, arrebentado de tanta pancada. Olha para os sapatos do defensor, meio puídos. “O senhor acredita no que está escrito aí?”.
O defensor solta um longo suspiro. Olha pela janela gradeada, que não vê limpeza faz tempo. Recorda-se de uma lição aprendida na faculdade, que o impressionara por tanto tempo e, hoje, serve para pagar as contas do mês. “Não interessa o que acredito ou deixo de acreditar. O importante é saber o que a acusação pode provar contra você. A regra do jogo é essa”.
O rapaz deixa de apalpar o supercílio. Encara o defensor com um olhar duro, misturado à surpresa. Não havia pensado nisso antes.