13:56O Coreto

de Fernando Muniz 

A praça,mal cuidada, entregue aos pedintes e jogadores de damas, uma vez por semana recebe um visitante ilustre. Toda terça. A vila o aguarda com ansiedade, pois a agitação é grande, diversão na certa. 

Vestido com terno escuro e puído, que combina com as sandálias de couro, aproxima-se do coreto no meio da praça. Arma uma pequena tenda, instala o aparelho de som, ligado a duas caixas, uma delas estourada, pluga o microfone e ajeita a fita isolante, para evitar mais um choque na hora do discurso. E começa sua catilinária.

Engana-se quem pensa que, daquele homem franzino, só sairão ganidos. Uma voz de profeta israelita chega a assustar os pombos e arranca da pasmaceira os mendigos, estirados embaixo de um cajueiro.

Acusa Sassafraz, sempre ele, tinhoso, de semear um rosário de pecados pelo mundo, os da cobiça, ira, preguiça, gula e muitos mais, além do pior de todos, palavra danada de falar, que aparece misturada aos engasgos, o da “concupiscência”. Acusa de infame e egoísta sua cruzada pela dissolução da família, que ilude as pessoas com o prazer fácil e as deixa malucas, as faz quebrar as leis dos homens e as leis divinas, tornando-as escravas dos desejos da carne, do dinheiro e do poder.

O discurso inflamado junta gente, que atravessa a praça para ouvi-lo. Não é pastor, muito menos padre ou político. Seus gestos solenes e a voz grave, pausada, lembram um cantor de ópera. Só que mirrado. O povo acha graça, toma aquilo como algum tipo de teatro e, condoídos, costumam deixar alguns trocados em cima das caixas de som.

O aglomerado chama a atenção das autoridades. Alguns policiais rondam a praça, desconfiados daquele palavrório enviesado sobre o pecado, o dinheiro e, muito suspeito, sobre o poder. Mais preocupante é que, ao terminar seu discurso, ele empresta o microfone a quem quiser. Isso deixa os policiais em alerta, orientados a manter a ordem pública.

Mais de uma vez o público ultrapassou a linha dos pedidos de casamento ou declarações de amor, denunciando adultérios, cobrando dívidas ou chamando alguém de salafrário. Tiveram que ser levados à delegacia. Mas de usual costuma respeitar os limites do tolerável. E o povo se alegra com o movimento na praça.

– Aqui temos uma senhora e sua filha, muito conhecidas na cidade, que me perguntaram se deveriam contar a verdade sobre o que as aflige. E eu disse: devem sim! O caminho da verdade é o correto! Por mais que ela seja dura. Porque a verdade liberta!

A senhora, muito acanhada, vestida feito viúva, dá um suspiro e apanha o microfone. Encara o populacho, que, a cidade sendo pequena, sabe de tudo via boatos. Tem um ódio daquilo, daquele ar pesado de censura sobre ela e sua filha.

– Pois então eu vou contar! Vou contar a desgraça que caiu sobre nós. Gente pobre, mas direita, que sempre acreditou em deus e em fazer o bem. Que deve trabalhar bastante, pois não temos a sorte de ganhar sem trabalhar. Pois então eu vou contar. Vou contar que a minha filha aqui, comigo – a garota, de uns quinze anos, enrola-se na cintura da mãe – foi trabalhar para vocês sabem muito bem quem. Essa pessoa que cuida dessa nossa cidade, o senhor prefeito. Uma menina, ó Altíssimo! Uma menina pura, que não conhecia as porcarias do mundo. Mas que conheceu. Nas mãos de vocês sabem quem, filho de vocês sabem quem, desse homem que cuida da nossa cidade! Rapaz que sempre teve do bom e do melhor, que nunca viu o dia raiar e as mãos que nunca pegaram enxada. O que o filho do prefeito pode querer com uma mocinha da roça? E aqui estamos nós. Ela embarrigada; é isso mesmo, embarrigada! Podem achar o que quiser, pois eu vou falar a verdade! Vou falar toda a verdade!

A viúva faz uma pausa para tomar um pouco d´água. O homenzinho percebe que, desta vez, parece ter ido longe demais. Tenta retomar o microfone, mas a senhora não entrega. O público, estático ante a ousadia daquela mãe, resolve não se dispersar. Quer mais. Quer tudo. Os policiais notam a falta de movimento. Mau sinal, até porque o discurso chega à Prefeitura, do outro lado da praça.

– E sabem o que é pior? Que deram cinco mil para ficarmos quietas. Para calarmos a boca, tomar o rumo da roça e sumir! Como se cinco mil comprasse a nossa dignidade. É isso o que aconteceu de verdade. Estou cansada de ver vocês com essa cara aí, de quem sabe o que é o certo e o errado, o que é bonito e o que é feio. Vocês não sabem nada! Olhem para o outro lado da praça! É lá que o Sassafraz fez pouso na nossa cidade!

Uma viatura da polícia encosta junto ao coreto. Três policiais aproximam-se pela direita, dois pela esquerda. Um arrebenta as caixas de som. E, aproveitando, coloca a tenda abaixo. Outro arranca o microfone das mãos da viúva, solta uns três palavrões e a enxota dali. Mas sem bater. A menina, chorando, não larga da cintura dela. Os que vieram pela direita cercam o pregador, que tentava escapar pelos lados do cajueiro. Um o imobiliza, outro espanta os curiosos e o terceiro desce o sarrafo nele; corretivo exemplar, na frente de todo mundo, sem qualquer cerimônia. Em não mais que cinco minutos a praça está vazia. O homenzinho, arrastado para dentro da viatura, tenta falar algo. Toma outro safanão.

– Agora chega. O senhor vai se explicar ao delegado. E ao prefeito. E ao padre.

A paz volta a reinar no lugarejo.

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