Murillo Correia
por José Maria Correia
Hoje o pai faria 105 anos.
Já está há tempos em outro plano.
Dele só tenho boas recordações.
Bonachão, boêmio e generoso, sempre com as crianças em volta pedindo e ganhando uns trocados.
Andávamos pela rua 15 de mãos de mãos dadas, eu de calças curtas e suspensórios, ele de terno e chapéu como era costume naquela época e cumprimentando educadamente a todos.
Nosso território comum eram as salas dos antigos cinemas, as confeitarias, os clubes e o velho estádio Joaquim Américo na Baixada.
Nas noites de verão eu e o irmão Murillo pedíamos para ele comprar sorvetes e, para nosso constrangimento infantil, entrava despreocupado no Aero Willys, de pijama mesmo, e saía conosco em direção à Praça Osório.
Gostava bastante de viajar e, todos os anos, lá íamos (toda a família) ver os grandes prêmios de turfe em São Paulo, no Rio ou em Porto Alegre onde ele era recebido com festa em todas essas confrarias, nas cocheiras dos reluzentes cavalos e nos salões elegantes dos Jockeys Clubes onde, ele exímio dançarino, deslizava nos bailes de gala com a mãe deslumbrante.
Meio desligado, no Rio de Janeiro terceirizava os cuidados a mim e ao irmão dando gorjetas aos garçons conhecidos para nos levar à praia de Copacabana enquanto ia ver as corridas no hipódromo da Gávea.
O prado era um espetáculo, os jóqueis com seus uniformes coloridos, camisas de seda com faixas, losangos, ferraduras e emblemas das cartas de baralho, azes, paus, valetes e tantos outros em suas montarias seguindo para o local de partida.
As arquibancadas eram lotadas de jovens senhoras elegantes e turfistas empolgados com as apostas, muitos de binóculos para acompanhar cada detalhe.
O pai, além de adepto do esporte dos reis, era um especialista em resolver problemas alheios eaparentemente insolúveis; e encontrar soluções rapidamente graças as amizades de toda uma vida que desfrutava e o grand- monde frequentador do Jockey Clube.
Sempre com um sorriso cativante, arrumava empregos, consultas médicas , advogados e tudo o mais para os que o procuravam.
Eu mesmo, adolescente, se fazia alguma bobagem ou alguém da minha turma, tratava logo de ligar para ele no antigo aparelho negro de disco :
– Oi pai estou com um problema .
Do outro lado a reação dele era gozada e uma forma de mostrar preocupação, simulava um gemido em voz alta :
– Aiiii!
Mas logo em seguida afirmava:
“Não se preocupe filho , vamos resolver”.
Durante anos no duro inverno curitibano eu ouvia o velho roncando no quarto ao lado ( ele tinha dez anos menos que a idade que tenho hoje) .
Aquele ronco enorme e grave de que sinto tanta falta hoje me dava uma sensação de segurança e proteção, como se fôssemos uma família unida na caverna, na idade da pedra, longe da ameaça dos tigres de dente de sabre.
O pai também era um grande gourmet e adorava os almoços caprichados feitos pela mãe aos domingos, quando tratava de trazer sempre bons vinhos italianos, compotas e frutas para nós e para os convidados.
Claro, nunca podia faltar a gengibirra ou a gasosa de framboesa e umas barrinhas de chocolate Diamante Negro para a criançada.
Para desespero da mãe, se havia algum tio ou visita presente, o pai sem cerimônia alguma logo que deixava a mesa sentava no sofá e em minutos com o jornal no colo começava a roncar.
Ronn, Ronnn. Era um sono abençoado e que fazia os gatos da casa deitarem e roncarem também na barriga aconchegante .
As netas e netos o adoravam – e com ele inventavam todos os tipos de brincadeiras que ele aceitava como super avô carinhoso.
Naquela época o pai deixava o carro para a mãe dar aula no Instituto de Educação e ia trabalhar de táxi no distante Tarumã, onde ainda fica o Jockey Clube. Lá era era diretor.
Conhecia todos os taxistas da cidade pelo nome, assim como os garçons e cozinheiros dos locais que frequentava.
Dizia brincando que fazia o que gostava: administrar corridas de cavalos, estar no meio dos amigos turfistas – e ainda recebia por isso.
Com ele aprendi as virtudes e a importância de ser tolerante, bem humorado e resiliente diante das adversidades.
Como é natural na vida adulta e profissional, eu tinha alguns poucos desafetos de quem evitava o convívio. O pai percebia e me aconselhava :
– Se não gostam de você, procure conviver e conversar meu filho. Ameniza os ódios e os ressentimentos e se vive melhor.
Bem , com o tempo, como acontece com todos os idosos, o pai foi perdendo a saúde, adoeceu e nos deixou depois de uma longa enfermidade com muito sofrimento. Os velhos amigos que o visitavam com frequência compareceram todos para a despedida. Como era atleticano e havia sido campeão jogando pelo clube em 1934 , alguns companheiros e jogadores daquela época o cobriram com a bandeira do clube e cantaram o hino do coração na despedida.
“A camisa rubro-negra só se veste com amor”
Naquele dia chorei como nunca de tristeza e desespero.
Eu tinha certeza que perdera para sempre meu melhor amigo e nunca nem no jamais dos ” jamases” teria alguém como ele em toda minha vida. A orfandade terrível me atingira duramente com o golpe inexorável e, apesar de adulto, me sentia desamparado.
Hoje, tantos anos passados, vejo que tinha razão.
Já não tenho pai e mãe neste ciclo de fatalidades para o qual nascemos destinados.
Sigo a vida neste repertório de saudades olhando o céu infinito com nostalgia imaginando o que possa haver de mistério e divino e não posso compreender.
Mas há em mim uma única certeza: a existência de um eterno além do físico e da matéria onde repousam magicamente minhas esperanças . Como as estrelas mais inatingíveis da mais remota galáxia das quais nunca nos aproximaremos, mas que ainda assim nos iluminam esplendorosamente e tornam as noites mais plenas de amor e de compaixão.
E se não fosse assim inspirado, não lembraria e escreveria hoje para o pai, com tanto amor e esse aperto que tenho para sempre em meu coração.
Fazia muito tempo que não me emocionava com um texto…lindo
Que belo texto, amigo.