9:22Lei da Compensação

de Fernando Muniz 

        Entra no bar sem muita esperança. Duas ou três mesas com figuras cinzentas e, nos fundos, um rapaz dedilha numa viola desbeiçada um set de música popular.

Junto ao palco, escondida por uma cortina velha, uma garota. Sozinha. Pele branca, cabelo castanho e franja, mira os presentes com um olhar perdido, como se tomada por uma profunda melancolia. Bela.

Aproxima-se da mesa, e, nos olhos da moça, surge uma nesga de pânico. Pensa em recuar, mas não, ela é bonita, rosto e mãos delicadas. E aquela sensação de deslocamento, que o deixa intrigado.

Senta-se sem a menor cerimônia, nem pede licença. Ela não esboça reação. Tenta puxar conversa, solta uma ou duas cantadas, clichês surrados, e a garota corresponde. Dá um sorriso e ele se anima. Tanto que pede uma bebida, forte, coquetel mais exótico do lugar. O rapaz da viola desiste de cantar e a plateia sequer nota.

O bar se esvazia. Ele a convida para continuarem a noite. Ela parece tomada por um profundo desconforto. O rapaz busca as mãos dela, por baixo da mesa. Quem sabe encontra as coxas; encontra uma armação de ferro a envolver as pernas frias. No rosto dela transparece uma dor imensa, de quem se acostumou à rejeição.

Mas ele não sai do lugar. Superado o susto, começa a alisar a armadura de ferro. Dá um sorriso terno, que a cativa. Levantam-se da mesa; ele a ajuda a vestir um sobretudo rosa e oferece o braço, que ela segura forte, protegida.

Em casa, enfrentam algumas dificuldades, que o fazem descer pela escadaria do prédio atrás de uma caixa de ferramentas, pois o fecho da armação emperrou. Sente-se um cavaleiro medieval, a conquistar donzela alheia. A moça sorri, divertida, enquanto ele enfrenta a escadaria novamente. O elevador é demorado demais.

Livres do empecilho, ele a carrega. Ela se deixa levar, curiosa com algo tão raro. Pede para deixar a luz apagada. O rapaz não aceita; quer vê-la inteira. Começa a afagá-la, busca suas pernas inertes, nervoso. A moça pede para que ele pare. Mas ele avança. A moça se sente à beira de um precipício. E se joga de cabeça.

Agora é a vez de o rapaz se assustar. Uivos, unhas nas costas, mordidas no pescoço. Nem parece que lhe faltam pernas. E nunca viu tanta fome de viver.

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