por Elio Gaspari
urante dois anos, o PT ralou na sua descida pelos nove círculos do inferno. Tudo bem, porque tinha direito a essa excursão. Agora, às vésperas de uma nova lista do Janot, na qual brilharão estrelas do PMDB e do tucanato, aparece uma visão do purgatório e ele se chamará caixa dois.
A melhor descrição do fenômeno do caixa dois veio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, numa nota em que defendeu sua prole tucana: “Há uma diferença entre quem recebeu recursos de caixa dois para financiamento de atividades político-eleitorais, erro que precisa ser reconhecido, reparado ou punido, daquele que obteve recursos para enriquecimento pessoal, crime puro e simples de corrupção”.
São “dois atos, cuja natureza penal há de ser distinguida pelos tribunais”. Admita-se que os tribunais descobrirão uma maneira de distinguir a natureza penal do destino dado ao dinheiro. Em tese, o magano comprovaria com notas fiscais como gastou em sua campanha o milhão que a empreiteira lhe deu pelo caixa dois. Fora essa hipótese, só com mais uma verdade alternativa de Donald Trump.
A construção do purgatório mora na primeira ponta do argumento exposto por FHC. É preciso punir o uso do caixa dois, mas se deve distinguir o que foi grana para a campanha ou para o próprio bolso. A ideia tem a beleza de um arco-íris, com sua mágica. Nele estão todas as cores, mas nunca se pode dizer quando uma acaba e a outra começa.
O caso extremo de Sérgio Cabral é fácil. Usando dinheiro de propinas e achaques fez-se um nababo e azeitou a máquina de corrupção que ainda hoje domina a política do Estado do Rio.
Daí em diante, começam as nuances. Há até mesmo uma distinção essencial na classificação da fonte pagadora. O dinheiro pode vir da atividade legítima de uma empresa que usou mecanismos contábeis ilegais para esconder o dinheiro que deu ao candidato.
Noutra vertente, o dinheiro pode derivar de uma propina. Entre esses dois extremos estão as cores do universo.
Todos os políticos apanhados nas listas das empreiteiras dirão que o dinheiro foi para o caixa dois de suas campanhas. Salvo nos casos mais grotescos, como o de Cabral, será difícil provar o contrário. Como o crime é amplo, geral e irrestrito, algum tipo de anistia votada pelo Congresso resolverá a questão e assim safamo-nos todos.
FHC diz que o caixa dois é um “erro que precisa ser reconhecido, reparado ou punido”. O primeiro passo para isso seria o reconhecimento, pelos próprios beneficiados, de que receberam pelo caixa dois o dinheiro já exposto pelos empresários. Feita a confissão, cada doutor pagaria uma multa proporcional à estimativa do que embolsou. Finalmente, o cidadão informaria que não incorporou ao seu patrimônio um só tostão, comprometendo-se a pagar pela mentira. Caso a Polícia Federal e o Ministério Público venham a provar a falsidade, ele vai para Curitiba.
Esse caminho preenche as condições postas por FHC de que o erro que precisa “reconhecido, reparado ou punido”. Segundo um cidadão que entende de leis e põe gente na cadeia, não há como fazer isso sem tornar inelegível o candidato que confessou. A ver.
Terrível época para se criar o purgatório do caixa dois. Não se deram conta de que a turma que vive no caixa um está preenchendo suas declarações de imposto de renda.
*Publicado na Folha de S.Paulo