por Ivan Schmidt
Leio um livraço na legítima acepção do termo, um tijolo de 589 páginas escritas pelo romancista cubano Leonardo Padura (O homem que amava os cachorros, Boitempo Editorial, SP, 2014), com tradução de Helena Pitta, excelente escolha para as horas de folga no feriadão de carnaval.
Frei Betto escreveu na primeira orelha que a obra do cubano, premiadíssima diga-se da passagem “é e não é uma ficção”, obviamente pelo fato de abordar um fato real, ou seja, a saga do espanhol Ramón Mercader, que após cumprir pena pelo assassinato de Leon Trostki na Cidade do México passou a viver como refugiado em Cuba.
Ao longo da narrativa, que é daquelas que magnetiza a atenção do leitor, Padura pormenoriza três histórias simultaneas: as de Trostki em seus variados períodos de exílio na Turquia, França, Noruega e finalmente no México; a do comunista Ramón Mercader, combatente republicano na Guerra Civil Espanhola, depois treinado para matar Trotski e a do hipotético narrador cubano Iván, que muito provavelmente poderia ser confundido com o próprio autor do romance.
Embora o autor não revele explicitamente é fácil detectar sua visceral antipatia por Stalin, a quem não poupa adjetivos depreciativos, ao mesmo tempo que descreve a pessoa do antigo comissário da Guerra e criador do Exército Vermelho como autêntico herói da Revolução de Outubro, perseguido com ódio mortal pelo “czar vestido de bolchevique”.
Despojado de todos os seus valores materiais (conseguiu salvar apenas os livros e manuscritos), Liev Davidovitch e sua mulher Natália Vedova primeiro foram banidos para o túmulo gelado de Alma-Ata, nos confins da Sibéria, junto à fronteira com a China. Começava aí a peregrinação que teria continuidade nos torturantes exílios na Turquia, França, Noruega e Cidade do México, onde o profeta banido passaria seus últimos anos numa casa cedida pelo muralista Diego Rivera e sua mulher Frida Khalo, na povoação periférica de Coyoacán.
Tratado como inimigo número um pelo ditador Stalin, impedido de dar livre curso a suas ideias políticas e continuamente vigiado pela polícia dos governos que permitiram seu ingresso como exilado, mesmo assim Trotski conseguia comunicar-se com seus seguidores e simpatizantes na Europa e Estados Unidos, principalmente seu filho Liova, através da correspondência e dos pouquíssimos amigos que conseguiam burlar a vigilância e visitá-lo nas distantes residências em que era confinado, como o fiorde quase inacessível que o governo norueguês providenciou para que o desterrado se mantivesse amordaçado.
Referindo-se aos longos anos recheados de tormentos morais vividos por Trotski, Padura escreveu que “a hostilidade que o rodeava era infinita e poderosa, e seu principal conflito era com uma revolução que tinha feito triunfar e com um Estado que tinha ajudado a criar”.
A pressão exercida pela diplomacia stalinista sobre os governos dos países que concederam visto de entrada ao antigo líder da revolução, era de tal forma violenta, que a maioria deles simplesmente se negava peremptoriamente a tratar do assunto em suas chancelarias.
A concessão do visto pelo governo mexicano presidido à época pelo general Lázaro Cárdenas, mais tarde chamado de comunista, foi conseguida graças ao prestígio pessoal do pintor Diego Rivera, que inclusive cedeu parte de sua famosa Casa Azul para a habitação de Liev e Natália.
Foi também em Coyoacán que se reuniu a comissão de personalidades internacionais presidida pelo filósofo norte-americano John Dewey, com a finalidade de examinar em profundidade as acusações de traição, terrorismo e golpe contra seu governo – feitas por Stalin contra Trotski. É também desse período a trágica notícia da morte de Liova, um dos amados filhos de Trotski e Natália, que morava em Paris onde atuava como divulgador e editor dos livros e folhetos escritos pelo pai.
E, ainda, o aparecimento em cena do autômato stalinista Ramon Mercader, ou Jacques Mornard, o assassino treinado por Moscou para eliminar fisicamente Liev Davidovitch, que a essa altura da vida agitada e em constante vigília, já havia perdido todos os amigos e camaradas da atribulada aventura revolucionária.
Em novembro, ao completar 58 anos (20 anos da revolução), o aniversário de Liev “quase coincidida com o Dia dos Mortos, que os mexicanos celebram como uma festa para trazer os defuntos de volta à vida e levar os vivos a debruçar-se sobre o Além”, descreveu Padura ao informar que “Diego e Frida encheram a Casa Azul de caveiras vestidas das formas mais estranhas e construíram um altar, com velas e comidas para recordar os seus mortos”.
O dado instigante desse inusitado fervor religioso é que Liev Davidovitch “achou saudável aquela proximidade mexicana com a morte, porque os familiarizava com a única meta que todas as vidas partilhavam, a única de que não é possível escapar, mesmo contra a vontade de Stalin”.
O cerco de Ramón Mercader começava a apertar, mas o desfecho da história eu conto depois do carnaval.
Aproveite o feriadão do Carnaval e se dê também ao trabalho de ler sobre o Holodomor Ucraniano, outra obra do Pai dos Povos, hoje ainda adorado por muitos ignorantes que se intitulam socialistas, coisa que muitos deles não sabem nem o significado certo.